O poeta e a cidade no mundo romano - Universidade de Coimbra
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Marcial e a Urbe: o meio físico e histórico-social dos epigramas<br />
<strong>de</strong> indigência extrema (como 1.92) po<strong>de</strong>m ser mais uma forma <strong>de</strong> glosar o<br />
mote do que expressão da realida<strong>de</strong> 25 .<br />
A cruelda<strong>de</strong> da troça em alguns dos quadros sugere que a pobreza é resultado<br />
<strong>de</strong> culpa. Po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>scortinar o topos da retórica contra a sumptuosida<strong>de</strong>,<br />
presente na crítica aos esbanjadores 26 e em vocabulário relacionado com<br />
luxuria. Mas intensifica-se a censura quando se trata <strong>de</strong> mostrar o que não se<br />
é. Com efeito, em Marcial está patente o empobrecimento <strong>de</strong> um grupo em<br />
especial: uma classe <strong>no</strong>bre com a qual o <strong>poeta</strong> convive e na qual se inclui. São<br />
pessoas <strong>de</strong> gostos requintados e, por isso, dispendiosos. Assim, neste século I d.<br />
C., ao lado <strong>de</strong> libertos riquíssimos, surge uma or<strong>de</strong>m equestre arruinada. Entre<br />
os cavaleiros, há quem, apesar do aparato, tenha mesmo <strong>de</strong> empenhar o anel<br />
distintivo da sua classe (2.57). São pessoas que, habituados a privar com a nata<br />
da <strong>no</strong>breza romana, continuam a cultivar o bom gosto. Mas, para um homem<br />
<strong>de</strong> gostos requintados e empobrecido, como Mamurra, uma visita às montras<br />
transforma-se num verda<strong>de</strong>iro suplício (9.59; cf. 10.80). Quem se habituou a<br />
viver com sumptuosida<strong>de</strong>, dificilmente se habituará a uma vida simples, como<br />
<strong>de</strong>monstra a referida anedota sobre a morte <strong>de</strong> Apício. Em contraste, o liberto<br />
Sirisco herdou uma fortuna do patro<strong>no</strong>, mas <strong>de</strong>sperdiça-a com gostos plebeus<br />
(5.70).<br />
Como seria <strong>de</strong> esperar, numa socieda<strong>de</strong> que tem escravos, os libertos e<br />
<strong>no</strong>vos-ricos são bastante atacados pelo <strong>poeta</strong>, sobretudo aqueles que procuram<br />
ostentar insolentemente as riquezas ou disfarçar os sinais da antiga escravatura<br />
(2.29). Zoilo é quem melhor incarna o liberto e <strong>no</strong>vo-rico sumptuoso, luxurioso,<br />
cultor <strong>de</strong> falsas aparências, imbuído <strong>de</strong> mau-carácter e <strong>de</strong> mau gosto 27 . As suas<br />
extravagâncias durante o jantar recordam as <strong>de</strong> Trimalquião <strong>no</strong> Satyricon <strong>de</strong><br />
Petrónio 28 . Usurpou o status <strong>de</strong> cavaleiro 29 , e a ostentação frívola que marca a<br />
sua vida evi<strong>de</strong>ncia-se pelo tamanho do anel (11.37), pela excessiva mudança<br />
<strong>de</strong> roupa durante a cena (5.79), pelo esplendor das colchas do leito (2.16),<br />
pela envergadura da liteira 30 . Mas afinal tudo assenta em bases falsas. Marcial<br />
diz que ele é ladrão e escravo fugitivo (11.54) e um filho <strong>de</strong> ninguém, dada a<br />
sua origem servil, jogando com o facto <strong>de</strong>, à face da lei romana, um escravo<br />
não ter pais nem filhos (11.12). Marcial mostra-se preocupado com o status<br />
25 Vi<strong>de</strong> Harris 2011 27-54.<br />
26 Cf. 3.62; 7.98; 11.66.<br />
27 O <strong>no</strong>me ocorre em vários epigramas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da carreira <strong>de</strong> Marcial: 2.16; 2.19; 2.42;<br />
2.58; 2.81; 3.29; 3.82; 4.77; 5.79; 6.91; 11.12; 11.30; 11.37; 11.54; 11.85; 11.92. Marcial ter-se-á<br />
inspirado num crítico homérico do séc. IV a.C., alcunhado <strong>de</strong> Homeromástix, odiado pela sua<br />
maledicência. Para o estudo das influências literárias e históricas sofridas por Marcial na criação<br />
<strong>de</strong>sta personagem, vi<strong>de</strong> Kay 1985 92-93.<br />
28 3.82. cf. Petrónio, 32-78. Vi<strong>de</strong> Leão 2004 191-208.<br />
29 Cf. 3.29: possui os anéis distintivos <strong>de</strong>sta classe.<br />
30 Cf. 2.81; Filipe (6.84) e Afro (6.77) têm uma atitu<strong>de</strong> semelhante <strong>de</strong> ostentação.<br />
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