O poeta e a cidade no mundo romano - Universidade de Coimbra
O poeta e a cidade no mundo romano - Universidade de Coimbra
O poeta e a cidade no mundo romano - Universidade de Coimbra
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Cláudia Teixeira<br />
30<br />
palácio. Ele conseguiu escapar, <strong>no</strong> meio daquela mortanda<strong>de</strong>, e refugiou-se nas<br />
terras dos Rútulos, sob a protecção das armas <strong>de</strong> Tur<strong>no</strong>, que lhe dá <strong>de</strong>fesa e<br />
hospitalida<strong>de</strong>.»<br />
A substância da causa local, i.e., a reposição da justiça e a reparação das<br />
injúrias, permite concluir que a incorporação não traduz um movimento<br />
que favorece apenas o lado mais forte. Pelo contrário, a incorporação, tal<br />
como Virgílio <strong>no</strong>-la equaciona neste episódio, subenten<strong>de</strong> um traço que,<br />
historicamente, se preten<strong>de</strong>u fazer habitar <strong>no</strong> centro nevrálgico da Pax romana:<br />
apoiada <strong>no</strong> conceito <strong>de</strong> que a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m e <strong>de</strong> justiça constitui uma<br />
aspiração comum a todos os seres huma<strong>no</strong>s, a romanida<strong>de</strong> apresenta-se como<br />
o único espaço ético capaz <strong>de</strong> lhe dar resposta. E, neste sentido, a entrega do<br />
comando a Eneias, ou seja, a Roma, nada mais reproduz do que a razão <strong>de</strong><br />
força da i<strong>de</strong>ologia incorporativa do imperium: a construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><br />
civilizada necessita <strong>de</strong> uma soberania forte, cuja li<strong>de</strong>rança consiga <strong>de</strong>belar a<br />
barbárie e or<strong>de</strong>nar o caos.<br />
Os estudos críticos sobre o livro VIII da Eneida têm observado que não é<br />
circunstância <strong>de</strong>spicienda o facto <strong>de</strong> estes acontecimentos ocorrerem <strong>no</strong> rei<strong>no</strong><br />
<strong>de</strong> Evandro, local on<strong>de</strong> se erguerá a futura <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Roma, elemento que é<br />
expressamente trazido à narrativa, quando, <strong>no</strong> centro do livro, Evandro mostra<br />
a Eneias os lugares do seu rei<strong>no</strong> que, mais tar<strong>de</strong>, se constituirão como lugares<br />
simbólicos <strong>de</strong> Roma (a porta Carmental, o bosque do qual Rómulo fez asilo,<br />
o Lupercal, o bosque <strong>de</strong> Argileto, a rocha Tarpeia, o Capitólio e o bairro das<br />
Carinas). E é precisamente nesse espaço, presentemente caracterizado por<br />
uma vivência <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m bucólica, baseada em valores antigos como a simplicitas<br />
e a paupertas (que, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> se constituírem como valores centrais da<br />
romanida<strong>de</strong>, não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> contrastar com a magnificência dos tempos do<br />
império), que Virgílio vai ainda proporcionar ao leitor o sentido universal<br />
da missão romana. Esse sentido <strong>de</strong>corre das três narrativas civilizacionais<br />
presentes <strong>no</strong> livro. A primeira é a narrativa heróica <strong>de</strong> Hércules, que vence<br />
Caco, um monstro que assolara a região e se <strong>de</strong>dicava a constantes carnificinas.<br />
A segunda conta a origem da <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Evandro, i.e., a sua primeira civilização,<br />
proporcionada pela acção do <strong>de</strong>us Satur<strong>no</strong>, que reuniu os homens bárbaros 49<br />
que ali habitavam dispersos pelas montanhas e lhes ensi<strong>no</strong>u a agricultura e<br />
49 En. 314-318: ‘Haec nemora indigenae Fauni Nymphaeque tenebant / gensque uirum truncis et<br />
duro robore nata, quis neque mos neque cultus erat nec iungere tauros / aut componere opes <strong>no</strong>rant aut<br />
parcere parto, / sed rami atque asper uictu uenatus alebat.’ «Estes bosques tinham por habitantes<br />
os Fau<strong>no</strong>s e as Ninfas indígenas e uma raça <strong>de</strong> homens nascida dos troncos do duro carvalho,<br />
que não tinham nem tradição, nem cultura, nem conheciam a maneira <strong>de</strong> atrelar os touros, <strong>de</strong><br />
armazenar os bens ou <strong>de</strong> poupar as suas provisões: os ramos e uma pe<strong>no</strong>sa caça lhes forneciam<br />
alimentos com que viver.»