O poeta e a cidade no mundo romano - Universidade de Coimbra
O poeta e a cidade no mundo romano - Universidade de Coimbra
O poeta e a cidade no mundo romano - Universidade de Coimbra
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Marcial e a Urbe: o meio físico e histórico-social dos epigramas<br />
que se aplica a zurzir os <strong>de</strong>feitos físicos e morais, por vezes visível <strong>no</strong>s cog<strong>no</strong>mes.<br />
Está presente <strong>no</strong>s grafitos e <strong>no</strong>s libelli <strong>de</strong> epigramas, bem como <strong>no</strong>s versos que<br />
os soldados cantam <strong>no</strong>s triunfos <strong>de</strong> César (Suet. Jul. 49.4; 51). A obscenida<strong>de</strong><br />
satírica provoca uma espécie <strong>de</strong> exclusão, <strong>de</strong> algum modo semelhante ao que<br />
acontece <strong>no</strong> sacrifício do bo<strong>de</strong> expiatório. Os insultos mais violentos que o <strong>poeta</strong><br />
usa são irrumo e paedico. Em qualquer dos casos trata-se <strong>de</strong> penetrar/violentar o<br />
visado, mas irrumare é o mais infamante porque con<strong>de</strong>na o visado ao silêncio.<br />
Ora a obscenida<strong>de</strong> do <strong>poeta</strong> tem o mesmo papel castigador da irrumatio 58 . Mas<br />
o <strong>poeta</strong> salienta que esta linguagem tem um contexto próprio e um objectivo<br />
apotropaico: o dos Jogos Florais, associados ao culto da fertilida<strong>de</strong> (1.Praef.;<br />
1.35.8), e o das Saturnais (11.2; 11.15), on<strong>de</strong> a licenciosida<strong>de</strong> era admitida. Mas<br />
procura evitá-la quando se trata <strong>de</strong> adular o imperador (8. Praef.).<br />
O <strong>poeta</strong> é sensível ao que lhe fere os tímpa<strong>no</strong>s. Numa época em que a<br />
leitura era feita em alta voz e a poesia era para ser ouvida, <strong>no</strong>s banquetes,<br />
nas termas, ou outros espaços públicos, Marcial, consciente da qualida<strong>de</strong> dos<br />
seus versos e exigente <strong>no</strong> labor limae, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> criticar os maus <strong>poeta</strong>s<br />
e recitadores: os pretensiosos que nada compõem (4.33; 6.14; 10.102), ou<br />
que compõem maus versos (7.3; 5.73; 11.93); os que, conscientes da fraca<br />
qualida<strong>de</strong>, nem se atrevem a recitar (2.88; 8.20); os que recitam plagiando<br />
o <strong>poeta</strong> (1.52; 1.66), como faz Fi<strong>de</strong>nti<strong>no</strong> (1.29; 1.53; 1.72), apesar <strong>de</strong> recitar<br />
mal (1.38). Marcial mostra-se reiteradamente agastado com os que aproveitam<br />
todas as oportunida<strong>de</strong>s para massacrar os ouvidos dos presentes (1.63; 2.71;<br />
3.18; 3.44; 3.45; 3.50; 4.41; 4.80; 6.41). Nestes círculos, movem-se também<br />
os invejosos. O <strong>poeta</strong> increpa asperamente os que vêem com maus olhos o seu<br />
sucesso literário e social (8.61; 9.97; cf. 4.27; 4.77) 59 .<br />
A cacofonia da Urbe torna-se cada vez mais odiosa para o <strong>poeta</strong>, que<br />
enumera um por um os ruídos da <strong>no</strong>ite, porque quem não habita numa domus<br />
tem Roma à cabeceira (ad cubile est Roma) (12.57) 60 . Em 1.41, a propósito<br />
<strong>de</strong> um fula<strong>no</strong> que se consi<strong>de</strong>ra urbanus, Marcial <strong>de</strong>sfia uma longa lista dos<br />
ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> várias etnias que apregoam a mercadoria pela <strong>cida<strong>de</strong></strong>. A casa<br />
<strong>de</strong> Júlio Marcial <strong>no</strong> Janículo tem a vantagem <strong>de</strong> facultar uma vista aprazível<br />
sobre a <strong>cida<strong>de</strong></strong>: um quadro em movimento da azáfama urbana ao qual foram<br />
retirados os ruídos (4.64.11-25).<br />
O belo está na simpli<strong>cida<strong>de</strong></strong>, na ausência <strong>de</strong> artifício e por isso nas crianças.<br />
A beleza está pois em Erócion, escravinha que morreu na infância. Numa<br />
58 Vi<strong>de</strong> Robert 2004a 48-68.<br />
59 Vi<strong>de</strong> Torrão 2010 71-101.<br />
60 Cf. Juvenal 3. O tema caro a Séneca, <strong>de</strong> que não está só consigo, está presente <strong>no</strong>s<br />
epigramas e condição <strong>de</strong> cliente <strong>de</strong>senraizado apresenta-se por referência ao espaço urba<strong>no</strong>.<br />
Há um sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência em termos <strong>de</strong> alienação: cf. 10.58.6-8. Vi<strong>de</strong> Pailler 1981<br />
79 -87.<br />
151