Prosa (2) - Academia Brasileira de Letras
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Relembrando Eucli<strong>de</strong>s<br />
que adquirira para o exercício <strong>de</strong> sua profissão <strong>de</strong> engenheiro civil. Àquela altura<br />
eram quase todos escritos em francês (não havia congêneres em português), o<br />
que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo os tornava inacessíveis para mim, apenas quartanista <strong>de</strong> escola<br />
primária. Mas, após longa “pesquisa <strong>de</strong> campo”, <strong>de</strong>scobri um volume que me<br />
chamou atenção: seu título, Os sertões; seu autor, Eucli<strong>de</strong>s da Cunha.<br />
Retirei-o com imensos cuidados, e já ia começar a folheá-lo quando fui surpreendida<br />
por meu pai, que assim se manifestou: “Embora esse livro seja realmente<br />
maravilhoso, não creio que você esteja madura para compreendê-lo,<br />
pois muitos <strong>de</strong> seus textos contêm expressões <strong>de</strong> natureza técnica e científica,<br />
dificilmente acessíveis a meninas <strong>de</strong> sua ida<strong>de</strong>. Mais tar<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rá lê-lo com<br />
proveito.” Minha mãe, que se achava por perto (e ouvira aquelas palavras típicas<br />
e a quem os <strong>de</strong>safios não atemorizavam, antes estimulavam), não se conteve<br />
que não dissesse: “Entendo que, com algum esforço, ela conseguirá ler o livro,<br />
e é conveniente, mesmo, que comece <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já a conviver com a boa literatura.<br />
Se não enten<strong>de</strong>r alguma palavra, recorrerá ao dicionário (e apontou para<br />
os dois imensos volumes do Moraes), que aí está exatamente para isso: ensinar<br />
o que não se sabe e se precisa saber.”<br />
Assim encorajada e prestigiada, lancei-me, ávida, à leitura dos Sertões, mas já<br />
às primeiras páginas fui me convencendo <strong>de</strong> que a razão se achava com meu<br />
pai, caboclo paulista, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> mineiros, mais reservado do que se revelava<br />
minha mãe, fluminense nascida em Vassouras, embora criada em nosso<br />
Estado. E na realida<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> todo esforço que eu <strong>de</strong>senvolvia tentando<br />
captar o sentido <strong>de</strong> um sem-número <strong>de</strong> palavras e expressões, não o conseguia,<br />
o que me obrigava a um recurso contínuo ao dicionário – este, no conjunto <strong>de</strong><br />
seus dois volumes, pesado <strong>de</strong>mais para ser transportado por uma consulente<br />
até certo ponto franzina.<br />
Quanto às palavras, eu as achava belíssimas, eufônicas, lembrando em certos<br />
casos acor<strong>de</strong>s musicais lançados por instrumento nobres e ultra-sensíveis.<br />
Mas seu entendimento se achava acima <strong>de</strong> minha capacida<strong>de</strong>, exigindo conhecimentos<br />
que só mais tar<strong>de</strong>, possivelmente no curso ginasial, me seriam proporcionados.<br />
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