18.07.2016 Views

o livro do desassossego

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

LIVRO DO DESASSOSSEGO<br />

O poente está espalha<strong>do</strong> pelas nuvens soltas separadas<br />

que o céu to<strong>do</strong> tem. Reflexos de todas as cores, reflexos bran<strong>do</strong>s,<br />

enchem as diversidades <strong>do</strong> ar alto, bóiam ausentes nas<br />

grandes mágoas da altura. Pelos cimos <strong>do</strong>s telha<strong>do</strong>s ergui<strong>do</strong>s,<br />

meio-cor, meio-sombras, os últimos raios lentos <strong>do</strong> sol<br />

in<strong>do</strong>-se tomam formas de cor que nem são suas nem das coisas<br />

em que pousam. Há um grande sossego acima <strong>do</strong> nível<br />

rui<strong>do</strong>so da cidade que vai também sossegan<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> respira<br />

para além da cor e <strong>do</strong> som, num hausto fun<strong>do</strong> e mu<strong>do</strong>.<br />

Nas casas coloridas que o sol não vê, as cores começam<br />

a ter tons de cinzento delas. Há frio nas diversidades dessas<br />

cores. Dorme uma pequena inquietação nos vales falsos das<br />

ruas. Dorme e sossega. E pouco a pouco, nas mais baixas das<br />

nuvens altas, começam os reflexos a ser de sombra; só naquela<br />

pequena nuvem, que paira águia branca acima de tu<strong>do</strong>,<br />

o sol conserva, de longe, o seu ouro rin<strong>do</strong>.<br />

Tu<strong>do</strong> quanto tenho busca<strong>do</strong> na vida, eu mesmo o deixei<br />

por buscar. Sou como alguém que procure distraidamente o<br />

que, no sonho entre a busca, esqueceu já o que era. Torna-se<br />

mais real que a coisa buscada ausente o gesto real das mãos<br />

visíveis que buscam, revolven<strong>do</strong>, deslocan<strong>do</strong>, assentan<strong>do</strong>, e<br />

existem brancas e longas, com cinco de<strong>do</strong>s cada uma, exatamente.<br />

Tu<strong>do</strong> quanto tenho ti<strong>do</strong> é como este céu alto e diversamente<br />

o mesmo, farrapos de nada toca<strong>do</strong>s de uma luz distante,<br />

fragmentos de falsa vida que a morte <strong>do</strong>ura de longe,<br />

com seu sorriso triste de verdade inteira. Tu<strong>do</strong> quanto tenho<br />

ti<strong>do</strong>, sim, tem si<strong>do</strong> o não ter sabi<strong>do</strong> buscar, senhor feudal de<br />

pântanos à tarde, príncipe deserto de uma cidade de túmulos<br />

vazios.<br />

Tu<strong>do</strong> quanto sou, ou quanto fui, ou quanto penso <strong>do</strong><br />

que sou ou fui, — tu<strong>do</strong> isso perde de repente — nestes meus

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!