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o livro do desassossego

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FERNANDO PESSOA<br />

Não choro a perda da minha infância; choro que tu<strong>do</strong>, e<br />

nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstrata <strong>do</strong> tempo,<br />

não a fuga concreta <strong>do</strong> tempo — que é meu, que me dói no<br />

cérebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas<br />

<strong>do</strong> piano lá de cima, terrivelmente anônimo e longínquo.<br />

É to<strong>do</strong> o mistério de que nada dura que martela repetidamente<br />

coisas que não chegam a ser música, mas são saudade,<br />

no fun<strong>do</strong> absur<strong>do</strong> da minha recordação.<br />

Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que<br />

nunca vi, onde a aprendiza que não conheci está ainda hoje<br />

relatan<strong>do</strong>, de<strong>do</strong> a de<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>s, as escalas sempre iguais <strong>do</strong><br />

que já está morto. Vejo, vou ven<strong>do</strong> mais, reconstruo ven<strong>do</strong>.<br />

E to<strong>do</strong> o lar lá <strong>do</strong> andar lá de cima, sau<strong>do</strong>so hoje mas não<br />

ontem, vem erguen<strong>do</strong>-se fictício da minha contemplação desentendida.<br />

Suponho, porém, que nisto tu<strong>do</strong> sou transla<strong>do</strong>, que a<br />

saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstrata, mas<br />

a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas<br />

emoções, que em mim são literárias, fossem, — di-lo-ia Vieira<br />

— literais. É na minha suposição de sentir que me magôo<br />

e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os<br />

olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e<br />

sinto.<br />

E sempre, com uma constância que vem <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>, com uma persistência que estuda metafisicamente,<br />

soam, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela<br />

espinha <strong>do</strong>rsal física da minha recordação. São as ruas antigas<br />

com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas<br />

mortas que me estão falan<strong>do</strong>, através da transparência<br />

da falta delas hoje; são remorsos <strong>do</strong> que fiz ou não fiz, sons de<br />

regatos na noite, ruí<strong>do</strong>s lá embaixo na casa queda.<br />

Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar,<br />

esmagar, partir esse impossível disco gramofônico que soa

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