18.07.2016 Views

o livro do desassossego

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

FERNANDO PESSOA<br />

nada salvo o alívio suposto, o momento propício e o poder<br />

perder tu<strong>do</strong> esplendidamente.<br />

Não sei quantos terão contempla<strong>do</strong>, com o olhar que<br />

merece, uma rua deserta com gente nele. Já este mo<strong>do</strong> de<br />

dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetivamente<br />

a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não<br />

passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam<br />

nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreender<br />

isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível<br />

para quem não conheça mais que um burro.<br />

As sensações ajustam-se, dentro de nós a certos graus e<br />

tipos da compreensão delas. Há maneiras de entender que<br />

têm maneiras de ser entendidas.<br />

Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia<br />

à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de<br />

viver que só me não parece insuportável porque de fato a suporto.<br />

É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um<br />

desejo de ser outra pessoa em to<strong>do</strong>s os poros, uma breve<br />

notícia <strong>do</strong> fim.<br />

As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam.<br />

Ver passar a vida sob um dia azul compensa-me de muito.<br />

Esqueço indefinidamente, esqueço mais <strong>do</strong> que podia<br />

lembrar. O meu coração translúci<strong>do</strong> e aéreo penetra-se da<br />

suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente.<br />

Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida<br />

de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!