18.07.2016 Views

o livro do desassossego

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

LIVRO DO DESASSOSSEGO<br />

Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho<br />

feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da<br />

vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma,<br />

fazen<strong>do</strong> versos em prosa às sensações intransmissíveis<br />

corn que torno meu o universo incógnito. Estou farto de<br />

mim, objetiva e subjetivamente. Estou farto de tu<strong>do</strong>, e <strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong>. Nuvens... São tu<strong>do</strong>, desmanchamentos <strong>do</strong><br />

alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que<br />

não existe; farrapos indescritiveis <strong>do</strong> tédio que lhes imponho;<br />

névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de<br />

rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens... São como<br />

eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de<br />

um impulso invisível, trovejan<strong>do</strong> ou não trovejan<strong>do</strong>, alegran<strong>do</strong><br />

brancas ou escurecen<strong>do</strong> negras, ficções <strong>do</strong> intervalo e<br />

<strong>do</strong> descaminho, longe <strong>do</strong> ruí<strong>do</strong> da terra e sem ter o silêncio<br />

<strong>do</strong> céu. Nuvens... Continuam passan<strong>do</strong>, continuam sempre<br />

passan<strong>do</strong>, passarão sempre continuan<strong>do</strong>, num enrolamento<br />

descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de<br />

falso céu desfeito.<br />

E por fim, por sobre a escuridão <strong>do</strong>s telha<strong>do</strong>s lustrosos,<br />

a luz fria da manhã tépida raia como um suplício <strong>do</strong> Apocalipse.<br />

É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. É<br />

outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade<br />

fictícia, a atividade sem remédio. É outra vez a minha personalidade<br />

física, visível, social, transmissível por palavras<br />

que não dizem nada, usável pelos gestos <strong>do</strong>s outros e pela<br />

consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o<br />

princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as<br />

frinchas das portas das janelas — bem longe de herméticas,<br />

meu Deus! —, vou sentin<strong>do</strong> que não poderei guardar mais o<br />

meu refúgio de estar deita<strong>do</strong>, de não estar <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> mas de<br />

o poder estar, de ir sonhan<strong>do</strong>, sem saber que há verdade nem<br />

realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um des-

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!