18.07.2016 Views

o livro do desassossego

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

FERNANDO PESSOA<br />

Há mágoas íntimas que não sabemos distinguir por o<br />

que contêm de sutil e de infiltra<strong>do</strong>, se são da alma ou <strong>do</strong><br />

corpo, se são o mal-estar de se estar sentin<strong>do</strong> a futilidade da<br />

vida, se são a má disposição que vem de qualquer abismo<br />

orgânico — estômago, fíga<strong>do</strong> ou cérebro. Quantas vêzes se<br />

me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sedimento<br />

torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes me dói<br />

existir, numa náusea a tal ponto incerta que não sei distinguir<br />

se é um tédio, se um prenúncio de vômito! Quantas<br />

vezes...<br />

Minha alma está hoje triste até ao corpo. To<strong>do</strong> eu me<br />

dôo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo<br />

em tu<strong>do</strong> quanto sou. Não me influi no ser a clareza límpida<br />

<strong>do</strong> dia, céu de grande azul puro, maré alta parada de luz<br />

difusa. Não me abranda nada o leve sopro fresco, ou tonai<br />

como se o estilo não esquecesse, com que o ar tem personalidade.<br />

Nada me é nada. Estou triste, mas não com uma tristeza<br />

definida, nem sequer com uma tristeza indefinida. Estou<br />

triste ali fora, na rua juncada de caixotes.<br />

Estas expressões não traduzem exatamente o que sinto<br />

porque sem dúvida nada pode traduzir exatamente o que alguém<br />

sente. Mas de algum mo<strong>do</strong> tento dar a impressão <strong>do</strong><br />

que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia,<br />

que, porque a vejo, também, de um mo<strong>do</strong> íntimo que não sei<br />

analisar, me pertence, faz parte de mim.<br />

Quisera viver diverso em países distantes. Quisera morrer<br />

outro entre bandeiras desconhecidas. Quisera ser aclama<strong>do</strong><br />

impera<strong>do</strong>r em outras eras, melhores hoje porque não<br />

são de hoje, vistas em vislumbre e colori<strong>do</strong>, inéditas a es-

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!