18.07.2016 Views

o livro do desassossego

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

FERNANDO PESSOA<br />

desertas <strong>do</strong>s plainos onde nunca estarei. As épocas históricas<br />

passadas são de pura maravilha, pois desde logo não posso<br />

supor que se realizarão comigo. Durmo quan<strong>do</strong> sonho o que<br />

não há; vou despertar quan<strong>do</strong> sonho o que pode haver.<br />

Debruço-me, de uma das janelas de sacada <strong>do</strong> escritório<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> ao meio-dia, sobre a rua onde a minha distração<br />

sente movimentos de gente nos olhos, e os não vê, da distância<br />

da meditação. Durmo sobre os cotovelos onde o corri -<br />

mão me dói, e sei de nada com um grande prometimento. Os<br />

pormenores da rua parada onde muitos andam destacam-seme<br />

com um afastamento mental: os caixotes apinha<strong>do</strong>s na<br />

carroça, os sacos à porta <strong>do</strong> armazém <strong>do</strong> outro, e, na montra<br />

mais afastada da mercearia da esquina, o vislumbre das garrafas<br />

daquele vinho <strong>do</strong> Porto que sonho que ninguém pode<br />

comprar. Isola-se-me o espírito de metade da matéria. Investigo<br />

com a imaginação. A gente que passa na rua é sempre a<br />

mesma que passou há pouco, é sempre o aspecto flutuante de<br />

alguém, nó<strong>do</strong>as de movimento, vozes de incerteza, coisas<br />

que passam e não chegam a acontecer.<br />

A notação com a consciência <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, antes que<br />

com os mesmos senti<strong>do</strong>s... A possibilidade de outras coisas...<br />

E, de repente, soa, de trás de mim no escritório, a<br />

vinda metafisicamente abrupta <strong>do</strong> moço. Sinto que o poderia<br />

matar por me interromper o que eu não estava pensan<strong>do</strong>.<br />

Olho-o, voltan<strong>do</strong>-me, com um silêncio cheio de ódio, escuto<br />

antecipadamente, numa tensão de homicídio latente, a voz<br />

que ele vai usar para me dizer qualquer coisa. Ele sorri <strong>do</strong><br />

fun<strong>do</strong> da casa e dá-me as boas tardes em voz alta. Odeio-o<br />

como ao universo. Tenho os olhos pesa<strong>do</strong>s de supor.<br />

Quan<strong>do</strong> durmo muitos sonhos, venho para a rua, de<br />

olhos abertos, ainda com o rastro e a segurança deles. E

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!