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o livro do desassossego

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LIVRO DO DESASSOSSEGO 227<br />

tes, naquela distância de tu<strong>do</strong> a que comumente se chama a<br />

Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência;<br />

porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração,<br />

se pudesse pensar, pararia.<br />

A quem, como eu, assim, viven<strong>do</strong> não sabe ter vida,<br />

que resta senão, como a meus poucos pares, a renúncia por<br />

mo<strong>do</strong> e a contemplação por destino? Não saben<strong>do</strong> o que é a<br />

vida religiosa, nem poden<strong>do</strong> sabê-lo, porque se não tem fé<br />

com a razão; não poden<strong>do</strong> ter fé na abstração <strong>do</strong> homem,<br />

nem saben<strong>do</strong> mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos,<br />

como motivo de ter alma a contemplação estética da vida. E,<br />

assim, alheios à solenidade de to<strong>do</strong>s os mun<strong>do</strong>s, indiferentes<br />

ao divino e despreza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> humano, entregamo-nos futilmente<br />

à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo,<br />

sutiliza<strong>do</strong>, como convém aos nossos nervos cerebrais.<br />

Reten<strong>do</strong>, da ciência, somente aquele seu preceito central,<br />

de que tu<strong>do</strong> é sujeito a leis fatais, contra as quais se não<br />

reage independentemente, por que reagir é elas terem feito<br />

que reagíssemos; e verifican<strong>do</strong> como esse preceito se ajusta<br />

ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdicamos<br />

<strong>do</strong> esforço como os débeis <strong>do</strong> entretenimento <strong>do</strong>s atletas,<br />

e curvamo-no sobre o <strong>livro</strong> das sensações com um grande<br />

escrúpulo de erudição sentida.<br />

Não toman<strong>do</strong> nada a sério, nem consideran<strong>do</strong> que nos<br />

fosse dada, por certo, outra realidade que não as nossas sensações,<br />

nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a<br />

grandes países desconheci<strong>do</strong>s. E, se nos empregamos assiduamente,<br />

não só na contemplação estética, mas também na<br />

expressão <strong>do</strong>s seus mo<strong>do</strong>s e resulta<strong>do</strong>s, é que a prosa ou o<br />

verso que escrevemos, destituí<strong>do</strong>s de vontade de querer convencer<br />

o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é<br />

apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade<br />

ao prazer subjetivo da leitura.

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