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o livro do desassossego

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FERNANDO PESSOA<br />

Sem querer, sinto que tenho esta<strong>do</strong> a pensar na minha<br />

vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente<br />

via e ouvia, que não era mais, em to<strong>do</strong> este meu percurso<br />

ocioso, que um refletor de imagens dadas, um biombo branco<br />

onde a realidade projeta cores e luz em vez de sombras.<br />

Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se<br />

nega, e o meu próprio abstrato observar era uma negação<br />

ainda.<br />

Tolda-se o ar de falta de névoa, tolda-se de luz pálida,<br />

em a qual a névoa como que se misturou. Reparo subitamente<br />

que o ruí<strong>do</strong> é muito maior, que muito mais gente<br />

existe. Os passos <strong>do</strong>s mais transeuntes são menos apressa<strong>do</strong>s.<br />

Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa <strong>do</strong>s<br />

outros, o correr anda<strong>do</strong> das varinas, a oscilação <strong>do</strong>s padeiros,<br />

monstruosos de cesto, e [a] igualdade divergente das vendeiros<br />

de tu<strong>do</strong> mais desmonotoniza-se só no conteú<strong>do</strong> das cestas,<br />

onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros<br />

chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais<br />

<strong>do</strong> seu ofício andante. Os policiais estagnam nos cruzamentos,<br />

desmenti<strong>do</strong> para<strong>do</strong> da civilização ao movimento invisível<br />

da subida <strong>do</strong> dia.<br />

Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que<br />

pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação<br />

que o vê-lo — contemplar tu<strong>do</strong> como se fora o viajante adulto<br />

chega<strong>do</strong> hoje à superfície da vida! Não ter aprendi<strong>do</strong>, da<br />

nascença em diante, a dar senti<strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s a estas coisas todas,<br />

poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão<br />

que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua<br />

realidade humana independente de se lhe chamar varina, e<br />

de se saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus<br />

o vê. Reparar em tu<strong>do</strong> pela primeira vez, não apocalipticamente,<br />

como revelações <strong>do</strong> Mistério, mas diretamente como<br />

florações da Realidade.

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