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o livro do desassossego

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LIVRO DO DESASSOSSEGO<br />

pasmo <strong>do</strong> automatismo meu com que os outros me desconhecem.<br />

Porque atravesso a vida quotidiana sem largar a<br />

mão da ama astral, e os meus passos na rua vão concordes e<br />

consoantes com obscuros desígnios da imaginação de <strong>do</strong>rmir.<br />

E na rua vou certo; não cambaleio; respon<strong>do</strong> bem;<br />

existo.<br />

Mas, quan<strong>do</strong> há um intervalo, e não tenho que vigiar o<br />

curso da minha marcha, para evitar veículos ou não estorvar<br />

peões, quan<strong>do</strong> não tenho que falar a alguém, nem me pesa a<br />

entrada para uma porta próxima, largo-me de novo nas águas<br />

<strong>do</strong> sonho, como um barco de papel <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> em bicos, e de<br />

novo regresso à ilusão mortiça que me acalentara a vaga<br />

consciência da manhã nascen<strong>do</strong> entre o som <strong>do</strong>s carros que<br />

hortaliçam.<br />

E então, em plena vida, é que o sonho tem grandes cinemas.<br />

Desço uma rua irreal da Baixa e a realidade das vidas<br />

que não são ata-me, com carinho, a cabeça num trapo branco<br />

de reminiscências falsas. Sou navega<strong>do</strong>r num desconhecimento<br />

de mim. Venci tu<strong>do</strong> onde nunca estive. E é uma brisa<br />

nova esta sonolência com que posso andar, curva<strong>do</strong> para a<br />

frente numa marcha sobre o impossível.<br />

Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em<br />

existir. Bêba<strong>do</strong> de me sentir, vagueio e an<strong>do</strong> certo. Se são<br />

horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são<br />

horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou<br />

igual. E por trás disso, céu meu, constelo-me às escondidas e<br />

tenho o meu infinito.<br />

Uma só coisa me maravilha mais <strong>do</strong> que a estupidez<br />

com que a maioria <strong>do</strong>s homens vive a sua vida: é a inteligência<br />

que há nessa estupidez.

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