18.07.2016 Views

o livro do desassossego

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

LIVRO DO DESASSOSSEGO<br />

finges. Quisera tu<strong>do</strong> quanto pode tornar ridículo o que sou, e<br />

porque torna ridículo o que sou. Quisera, quisera... Mas há<br />

sempre o sol quan<strong>do</strong> o sol brilha e a noite quan<strong>do</strong> a noite<br />

chega. Há sempre a mágoa quan<strong>do</strong> a mágoa nos dói e o sonho<br />

quan<strong>do</strong> o sonho nos embala. Há sempre o que há, e<br />

nunca o que deveria haver, não por ser melhor ou por ser<br />

pior, mas por ser outro. Há sempre...<br />

Na rua cheia de caixotes vão os carrega<strong>do</strong>res limpan<strong>do</strong> a<br />

rua. Um a um, com risos e ditos, vão pon<strong>do</strong> os caixotes nas<br />

carroças. Do alto da minha janela <strong>do</strong> escritório eu os vou<br />

ven<strong>do</strong>, com olhos tar<strong>do</strong>s em que as pálpebras estão <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.<br />

E qualquer coisa de sutil, de incompreensível, liga o que<br />

sinto aos fretes que estou ven<strong>do</strong> fazer, qualquer sensação desconhecida<br />

faz caixote de to<strong>do</strong> este meu tédio, ou angústia, ou<br />

náusea, e o ergue, em ombros de quem chalaceia alto, para<br />

uma carroça que não está aqui. E a luz <strong>do</strong> dia, serena como<br />

sempre, luz obliquamente, porque a rua é estreita, sobre<br />

onde estão erguen<strong>do</strong> os caixotes — não sobre os caixotes,<br />

que estão na sombra, mas sobre o ângulo lá ao fim onde os<br />

moços de fretes estão a fazer não fazer nada, indetermina -<br />

damente.<br />

Os classifica<strong>do</strong>res de coisas, que são aqueles homens de<br />

ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o<br />

classificável é infinito e portanto se não pode classificar. Mas<br />

o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis<br />

incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão<br />

nos interstícios <strong>do</strong> conhecimento.<br />

Talvez porque eu pense demais ou sonhe demais, o<br />

certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho,<br />

que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas<br />

minhas meditações <strong>do</strong> céu e da terra coisas que não brilham

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!