18.07.2016 Views

o livro do desassossego

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

FERNANDO PESSOA<br />

Tu<strong>do</strong>, porém, era falso. Não contaram histórias que<br />

outros houvessem conta<strong>do</strong>, nem se sabe ao certo <strong>do</strong> que partiu<br />

outrora, na esperança <strong>do</strong> embarque falso, filho da bruma<br />

futura e da indecisão por vir. Tenho nome entre os que tardam,<br />

e esse nome é sombra como tu<strong>do</strong>.<br />

Tenho assisti<strong>do</strong>, incógnito, ao desfalecimento gradual<br />

da minha vida, ao soçobro lento de tu<strong>do</strong> quanto quis ser.<br />

Posso dizer, com aquela verdade que não precisa de flores<br />

para se saber que está morta, que não há coisa que eu tenha<br />

queri<strong>do</strong>, ou em que tenha posto, um momento que fosse, o<br />

sonho só desse momento, que se me não tenha desfeito debaixo<br />

das janelas como pó parecen<strong>do</strong> pedra caí<strong>do</strong> de um vaso<br />

de andar alto. Parece, até, que o Destino tem sempre procura<strong>do</strong>,<br />

primeiro, fazer-me amar ou querer aquilo que ele mesmo<br />

tinha disposto para que no dia seguinte eu visse que não<br />

tinha ou teria.<br />

Especta<strong>do</strong>r irônico de mim mesmo, nunca, porém, desanimei<br />

de assistir à vida. E, desde que sei, hoje, por antecipação<br />

de cada vaga esperança que ela há-de ser desiludida,<br />

sofro o gozo especial de gozar já a desilusão com a esperança,<br />

como um amargo com <strong>do</strong>ce que torna o <strong>do</strong>ce <strong>do</strong>ce contra o<br />

amargo. Sou um estratégico sombrio, que, ten<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> todas<br />

as batalhas, traça já, no papel <strong>do</strong>s seus planos, gozan<strong>do</strong>lhe<br />

o esquema, os pormenores da sua retirada fatal, na véspera<br />

de cada sua nova batalha.<br />

Tem-me persegui<strong>do</strong>, como um ente maligno, o destino<br />

de não poder desejar sem saber que terei que não ter. Se um<br />

momento vejo na rua um vulto núbil de rapariga, e, indiferentemente<br />

que seja, tenho um momento de supor o que<br />

seria se ele fosse meu, é sempre certo que, a dez passos <strong>do</strong>

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!