18.07.2016 Views

o livro do desassossego

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

LIVRO DO DESASSOSSEGO<br />

me não satisfazem, mas sei que os versos que estou para escrever<br />

me não satisfarão, também. Sei-o tanto filosoficamente,<br />

como carnalmente, por uma entrevisão obscura e<br />

gladiolada.<br />

Por que escrevo então? Porque, prega<strong>do</strong>r que sou da<br />

renúncia, não aprendi ainda a executá-la plenamente. Não<br />

aprendi a abdicar da tendência para o verso e a prosa. Tenho<br />

de escrever como cumprin<strong>do</strong> um castigo. E o maior castigo é<br />

o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falha<strong>do</strong><br />

e incerto.<br />

Em criança escrevia já versos. Então escrevia versos<br />

muito maus, mas julgava-os perfeitos. Nunca mais tornarei<br />

a ter o prazer falso de produzir obra perfeita. O que escrevo<br />

hoje é muito melhor. É melhor, mesmo, <strong>do</strong> que o que poderiam<br />

escrever os melhores. Mas está infinitamente abaixo<br />

daquilo que eu, não sei por quê, sinto, que podia — ou talvez<br />

seja, que devia — escrever. Choro sobre os meus versos<br />

maus da infância como sobre uma criança morta, um filho<br />

morto, uma última esperança que se fosse.<br />

Se algum dia me suceder que, com uma vida firmemente<br />

segura, possa livremente escrever e publicar, sei que terei<br />

saudades desta vida incerta em que mal escrevo e não publico.<br />

Terei saudades, não só porque essa vida frusta é passa<strong>do</strong><br />

e vida que não mais terei, mas porque há em cada espécie<br />

de vida uma qualidade própria e um prazer peculiar, e<br />

quan<strong>do</strong> se passa para outra vida, ainda que melhor, esse prazer<br />

peculiar é menos feliz, essa qualidade própria é menos<br />

boa, deixam de existir, e há uma falta.<br />

Se algum dia me suceder que consiga levar ao bom calvário<br />

a cruz da minha intenção, encontrarei um calvário<br />

nesse bom calvário, e terei saudades de quan<strong>do</strong> era fútil,<br />

frusto e imperfeito. Serei menos de qualquer maneira.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!