18.07.2016 Views

o livro do desassossego

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

LIVRO DO DESASSOSSEGO<br />

caixeiro liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me<br />

sentir rejuvenescer.<br />

Na grande praça <strong>do</strong>minical há um movimento solene de<br />

outra espécie de dia. Em S. Domingos há a saída de uma<br />

missa, e vai principiar outra. Vejo uns que saem e os que<br />

ainda não entram, esperan<strong>do</strong> por alguns que não estão ven<strong>do</strong><br />

quem sai.<br />

Todas estas coisas não têm importância. São, como<br />

tu<strong>do</strong> no comum da vida, um sono <strong>do</strong>s mistérios e das ameias,<br />

e eu olho, como um arauto chega<strong>do</strong> à planície da minha meditação.<br />

Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porventura<br />

à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida consciência,<br />

o meu único fato melhor, e gozava tu<strong>do</strong> — até o que<br />

não tinha razão de gozar. Vivia por fora e o fato era limpo e<br />

novo. Que mais quer quem tem que morrer e o não sabe pela<br />

mão da mãe?<br />

Outrora gozava tu<strong>do</strong> isto, por isso é só agora, talvez,<br />

que compreen<strong>do</strong> quanto o gozava. Entrava para a missa<br />

como para um grande mistério, e saía da missa como para<br />

uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda<br />

verdadeiramente é. Só o ser que não crê e é adulto, com alma<br />

que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e<br />

a laje fria.<br />

Sim, o que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse<br />

lembrar-me <strong>do</strong> que fui. E esta multidão alheia que continua<br />

ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que<br />

começa a chegar para entrar para a outra — tu<strong>do</strong> isto são<br />

como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas<br />

abertas <strong>do</strong> meu lar ergui<strong>do</strong> sobre a margem.<br />

Memórias, <strong>do</strong>mingos, missas, prazer de haver si<strong>do</strong>, milagre<br />

<strong>do</strong> tempo que ficou por ter passa<strong>do</strong>, e não esquece nunca<br />

porque foi meu... Diagonal absurda das sensações prováveis,<br />

som súbito de carruagem de praça que soa rodas no<br />

fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s silêncios rui<strong>do</strong>sos <strong>do</strong>s automóveis, e de qualquer<br />

mo<strong>do</strong>, por um para<strong>do</strong>xo maternal <strong>do</strong> tempo, subsiste hoje,

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!