18.07.2016 Views

o livro do desassossego

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

LIVRO DO DESASSOSSEGO<br />

(não sen<strong>do</strong> consciente) era a vida. Via a manhã e tinha alegria;<br />

hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A<br />

criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás<br />

<strong>do</strong>s olhos vejo-me ven<strong>do</strong>; e só com isto se me obscurece o sol<br />

e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de<br />

aparecidas. Sim, outrora eu era daqui; hoje, a cada paisagem,<br />

nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede<br />

e peregrino da sua presentação, forasteiro <strong>do</strong> que vejo e ouço,<br />

velho de mim.<br />

Já vi tu<strong>do</strong>, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei.<br />

No meu sangue corre até a menor das paisagens futuras,<br />

e a angústia <strong>do</strong> que terei que ver de novo é uma monotonia<br />

antecipada para mim.<br />

E debruça<strong>do</strong> ao parapeito, gozan<strong>do</strong> <strong>do</strong> dia, sobre o volume<br />

vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a<br />

alma — a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver<br />

mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir,<br />

de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso <strong>do</strong> sol e<br />

<strong>do</strong>s dias, de despir, como um traje pesa<strong>do</strong>, à beira <strong>do</strong> grande<br />

leito, o esforço involuntário de ser.<br />

Há sossegos <strong>do</strong> campo na cidade. Há momentos, sobretu<strong>do</strong><br />

nos meio-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa,<br />

o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na<br />

Rua <strong>do</strong>s Doura<strong>do</strong>res, temos o bom sono.<br />

Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas<br />

carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes transeuntes<br />

lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhan<strong>do</strong>-os da<br />

janela <strong>do</strong> escritório, onde estou só, me transmuto: estou<br />

numa vila quieta da província, estagno numa aldeia incógnita,<br />

e porque me sinto outro sou feliz.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!