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o livro do desassossego

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92 FERNANDO PESSOA<br />

Foi-se hoje embora, diz-se que definitivamente, para a<br />

terra que é natal dele, o chama<strong>do</strong> moço <strong>do</strong> escritório, aquele<br />

mesmo homem que tenho esta<strong>do</strong> habitua<strong>do</strong> a considerar como<br />

parte desta casa humana, e, portanto, como parte de mim<br />

e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que é meu. Foi se hoje embora. No corre<strong>do</strong>r,<br />

encontran<strong>do</strong>-nos casuais para a surpresa esperada da despedida,<br />

dei-lhe eu um abraço timidamente retribuí<strong>do</strong>, e tive<br />

contra-alma bastante para não chorar, como, em meu coração,<br />

desejavam sem mim meus olhos quentes.<br />

Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos acidentes <strong>do</strong><br />

convívio ou da visão, porque foi nossa se torna nós. O que se<br />

partiu hoje, pois, para uma terra galega que ignoro, não foi,<br />

para mim, o moço <strong>do</strong> escritório: for uma parte vital, porque<br />

visual e humana, da substância da minha vida. Fui hoje diminuí<strong>do</strong>.<br />

Já não sou bem o mesmo. O moço <strong>do</strong> escritório<br />

foi-se embora.<br />

Tu<strong>do</strong> que se passa no onde vivemos é em nós que se<br />

passa. Tu<strong>do</strong> que cessa no que vemos é em nós que cessa.<br />

Tu<strong>do</strong> que foi, se o vimos quan<strong>do</strong> era, é de nós que foi tira<strong>do</strong><br />

quan<strong>do</strong> se partiu. O moço <strong>do</strong> escritório foi-se embora.<br />

É mais pesa<strong>do</strong>, mais velho, menos voluntário que me<br />

sento à carteira alta e começo a continuação da escrita de ontem.<br />

Mas a vaga tragédia de hoje interrompe com meditações,<br />

que tenho que <strong>do</strong>minar à força, o processo automático<br />

da escrita como deve ser. Não tenho alma para trabalhar senão<br />

porque posso com uma inércia ativa ser escravo de mim.<br />

O moço <strong>do</strong> escritório foi-se embora.<br />

Sim, amanhã, ou outro dia, ou quan<strong>do</strong> quer que soe<br />

para mim o sino sem som da morte ou da ida, eu também<br />

serei quem aqui já não está, copia<strong>do</strong>r antigo que vai ser arruma<strong>do</strong><br />

no armário por baixo <strong>do</strong> vão da escada. Sim, amanhã,<br />

ou quan<strong>do</strong> o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim

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