18.07.2016 Views

o livro do desassossego

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

FERNANDO PESSOA<br />

Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não<br />

é nada? que há no céu mais que uma cor que não é dele? que<br />

há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvi<strong>do</strong>,<br />

mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um<br />

sol já submisso? Que há em tu<strong>do</strong> isto senão eu? Ah, mas o<br />

tédio é isso, é só isso. E que em tu<strong>do</strong> isto — céu, terra,<br />

mun<strong>do</strong>, — o que há em tu<strong>do</strong> isto não é senão eu!<br />

Sossego enfim. Tu<strong>do</strong> quanto foi vestígio e desperdício<br />

some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e calmo.<br />

A hora que passo é como aquela em que me convertesse<br />

a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que<br />

nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse<br />

de existir, conservan<strong>do</strong> a consciência disso.<br />

Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como<br />

uma inutilidade, desce em mim ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu ser. As páginas<br />

lidas, os deveres cumpri<strong>do</strong>s, os passos e os acasos de<br />

viver — tu<strong>do</strong> isso se me tornou numa vaga penumbra, num<br />

halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranqüila que não<br />

sei o que é. O esforço, em que pus, uma ou outra vez, o<br />

esquecimento da alma; o pensamento, em que pus, uma vez<br />

ou outra, o esquecimento da ação — ambos se me volvem<br />

numa espécie de ternura sem sentimento, de compaixão<br />

frusta e vazia.<br />

Não é o dia lento e suave, nubla<strong>do</strong> e bran<strong>do</strong>. Não é a<br />

aragem imperfeita, quase nada, pouco mais <strong>do</strong> que o ar que<br />

já se sente. Não é a cor anônima <strong>do</strong> céu aqui e ali azul, frouxamente.<br />

Não. Não, porque não sinto. Vejo sem intenção<br />

nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum. Não<br />

sinto alma, mas sossego. As coisas externas, que estão nítidas<br />

e paradas, ainda as que se movem, são para mim como<br />

para o Cristo seria o mun<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong>, da altura de tu<strong>do</strong>, Satã

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!