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Livro Mídia, Misoginia e Golpe

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Mídia, Misoginia e Golpe<br />

roupa, senão se pega friagem”) ou então registrando que ela conversou, por exemplo,<br />

com a ministra da Casa Civil, que lhe deu uma ótima receita para tirar mancha de<br />

roupa, ou então que esquece coisas como o nome do ministro da Saúde, pouco<br />

interessada que está em alguma coisa que não diga respeito a si mesma, focada nas<br />

questões imediatas da vida cotidiana, relapsa com o que é da ordem do seu mandato.<br />

Embora seja um texto de humor, uma presidente evidentemente não faz isso –<br />

ainda que possa, sim, se preocupar com coisas do tipo jogar tranca numa sexta-feira à<br />

noite com as amigas (com “as meninas”, conforme a referência que se faz às ministras<br />

nesse Diário), ou, por estar nervosa, tomar uma lata de sorvete inteira, embora<br />

qualquer pessoa possa fazer tudo isso... –, a reiteração dessa imagem pode dar a<br />

impressão de que ela é antes de tudo uma mulher, uma mulherzinha comum, mais que<br />

uma presidente da República. Incapaz para o cargo? Isso pode passar subrepticiamente.<br />

Esse tipo de humor não caricatura Dilma Rousseff em um evento de Estado, em<br />

uma situação pública, mas caricatura o caráter da Dilma, sobretudo no confinamento<br />

da sua vida doméstica – o lugar da mulher na tradição machista. Tratava-se de<br />

caricaturar um “Dilma, mulher do lar”, e não exatamente que cuida do lar, mas que,<br />

nesse âmbito, precisa de ajuda para fazer as coisas mais banais – uma pessoa, no fim<br />

das contas, pouco capaz, que está sempre ocupada com miudezas...<br />

Assim, voltamos aos discursos sobre mulheres serem afeitas a essa escala de<br />

problemas: miúdos, do dia a dia, da emoção, da vida doméstica, privada, íntima, que se<br />

põem como inverso das coisas públicas de grande importância.<br />

Não sei quanto o humor define votos, por exemplo. Mas o humor é uma forma<br />

de retomar o que as pessoas pensam, coisas que costumam dizer... Aí, com esses<br />

exemplos, tem-se uma construção do tipo “ela é essa mulher irritadiça e que devia ficar<br />

cuidando dessas coisas; por que ela não fica tirando mancha de roupa em vez de<br />

querer mandar na economia de um País?”. Esse estar no lugar errado explicaria sua<br />

irritação. Problema que, então, seria fácil resolver: basta tirá-la desse lugar.<br />

E houve todas aquelas ocorrências com expressões baixas, como os<br />

xingamentos constantes de “vaca”, houve o “vai tomar no cu” no Maracanã, na<br />

abertura da Copa das Confederações, e aquele adesivo hediondo que fizeram com uma<br />

imagem dela de pernas abertas, para ser colocado na abertura do tanque de gasolina...<br />

Essas falas e essa representação indicam muito desse desejo, de que ela fosse tratada<br />

assim. Que fosse violada. Penetrada com o cano da bomba de abastecimento de<br />

combustível – uma representação do pênis do estuprador (bem maior, diga-se, uma das<br />

fantasias, talvez). Em suma, algo como “já que é uma mulher, então vamos fodê-la”.<br />

Se Groddeck 45 tiver razão, no inconsciente de muitas pessoas pulsava algo desse<br />

tipo. E, lembremos, há vários sentidos para “foder”: tirar da presidência fica, aí,<br />

homologado em alguma medida com tirá-la dessa pose, da posse desse lugar de<br />

44 Seção da Revista Piauí, publicada pela Editora Abril, que satirizava a presidente desde 2011 até a<br />

última edição da coluna humorística em junho de 2016 (número 117) e saiu em livro pela editora<br />

Companhia das Letras em 2014.<br />

45 Autor de “O livro dISSO” (São Paulo: Perspectiva. 1988), ainda mais radical do que Freud, parece, sobre<br />

as maquinações do inconsciente.<br />

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