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REBOSTEIO Nº 3

Revista REBOSTEIO DIGITAL número três - entrevistas, arte, cultura, poesia, literatura, comportamento, cinema, fotografia, artes plásticas.

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nós um bando de inveterados sofredores.<br />

Vagamos pelo mundo, ainda hoje, em pleno<br />

século XXI, como nas procissões de penitentes<br />

da idade média, convictos da nossa própria<br />

“culpa” pela “peste” da tentação de sentir prazer.<br />

Dispostos a fazer qualquer coisa para nos livrar<br />

dessa culpa, insuportavelmente pesada. Inclusive,<br />

e principalmente, renunciar ao prazer...<br />

A culpa é a antítese do prazer. É a vergonha<br />

profunda e dolorosa de estarmos fazendo algo<br />

errado e pecaminoso, fora dos padrões de<br />

“moralidade” que nos são impostos em nome da<br />

civilização.<br />

De prazer ninguém fala. Quando fala é com<br />

vergonha, sussurrando entre os dentes, numa total<br />

falta de jeito. Culpa, entretanto, pode e deve ser<br />

exibida em público, como um verdadeiro troféu<br />

do processo civilizatório: - vejam a minha dor!<br />

Vejam o quanto eu pago para ser “civilizado”...<br />

Prazer não tem status nenhum diante da culpa,<br />

cuja “dignidade social” beira a própria santidade,<br />

apesar de ser a erva daninha no jardim da nossa<br />

psique. Onde o prazer supre, a culpa esgota.<br />

Onde o prazer nutre, a culpa parasita. Onde o<br />

prazer nos ampara, a culpa nos derruba.<br />

Desde que nascemos, somos exaustivamente<br />

treinados para sofrer, mas ninguém recebe o<br />

mínimo de treinamento para obter algum prazer<br />

neste mundo. Quem recebeu aulas de como obter<br />

um verdadeiro orgasmo? Quem se aprimorou em<br />

alguma técnica de como prolongar<br />

indefinidamente o prazer sexual? Quem se<br />

rejubila no prazer com a mesma intensidade que<br />

se entrega à dor?<br />

O funcionamento do sistema requer que<br />

estejamos fora da nossa própria órbita,<br />

desligados inteiramente das necessidades do<br />

nosso próprio corpo. Fragmentadas em mil peças<br />

da engrenagem social em que vamos nos<br />

ajustando como podemos. Em nome de<br />

sobreviver...<br />

Ainda que conveniente e estrategicamente<br />

omitido nos discursos sobre as maravilhosas<br />

virtudes da civilização, o veto ao prazer é o pilar<br />

central sobre o qual repousa a sociedade em que<br />

vivemos, esse enorme castelo assombrado, cuja<br />

função primordial é intimidar e restringir ao<br />

máximo o nosso próprio desejo.<br />

No poema “Estirpe”, Cecília Meireles expressa<br />

como ninguém essa dor-de-que-falo, essa<br />

ausência de prazer que transforma a vida das<br />

pessoas nesse campo de concentração, onde<br />

apenas se adia a hora da “câmara de gás”...<br />

Os mendigos maiores não dizem mais,<br />

nem fazem nada.<br />

Sabem que é inútil e exaustivo. Deixamse<br />

estar. Deixam-se estar.<br />

Deixam-se estar ao sol e à chuva, com o<br />

mesmo ar de completa coragem,<br />

longe do corpo que fica em qualquer<br />

lugar...<br />

...Puseram sua miséria junto aos jardins<br />

do mundo feliz<br />

mas não querem que, do outro lado,<br />

tenham notícia da estranha sorte<br />

que anda por eles como um rio num<br />

país...<br />

... Ah! os mendigos são um povo que se<br />

vai convertendo em pedra<br />

Esse povo é que é o meu.<br />

Letícia Lanz<br />

Curitiba - Paraná<br />

http://www.leticialanz.org/<br />

página 21

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