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REBOSTEIO Nº 3

Revista REBOSTEIO DIGITAL número três - entrevistas, arte, cultura, poesia, literatura, comportamento, cinema, fotografia, artes plásticas.

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Eu vou aproveitar este espaço para confessar uma<br />

autocrítica feita há tempos. A minha visão da<br />

cultura padecia de um incômodo, talvez ingênuo,<br />

idealismo filosófico que não cedia de boa vontade<br />

ao multiculturalismo de raízes antropológicas. Não<br />

por ser propriamente um 'eurocentrista', mas por<br />

almejar algum tipo universal de valor cultural<br />

abstrato que possibilitasse colocar lado a lado,<br />

digamos, Bosch e algum artista contemporâneo.<br />

Pretensões assim, em geral, buscam intersecções<br />

forçadas, e fazem pouco caso dos contextos<br />

históricos, das particulares expressões étnicas, das<br />

identidades culturais, dos conflitos políticos que<br />

permeiam a cultura. Bem, com o tempo mudei a<br />

minha visão ao me dar conta de que meu<br />

relativismo antimetafísico precisava ser coerente<br />

com a percepção das diferenças concretas, atuantes<br />

no mundo.<br />

Neste momento, estou vendo o belo quadro Morro<br />

Vermelho, de Lasar Segall; esse cara, judeu lituano<br />

de origem pobre que presenciou os pogroms, mais<br />

tarde naturalizado brasileiro, parece ter retratado<br />

essa negra com seu filho, provavelmente de alguma<br />

comunidade do Rio, na típica postura que evoca<br />

uma madona do Renascimento, como as de um<br />

Rafael, um Leonardo, etc. Que beleza esse tipo de<br />

confluência, não?<br />

Mas citei propositalmente esse quadro para suscitar<br />

uma pergunta: se ele fosse pintado por um negro, e<br />

não por um branco oriundo da Europa Oriental,<br />

estaria inserido na Cultura Negra? Certamente que<br />

não, tal como Cruz e Sousa e Machado de Assis não<br />

fazem parte dela. Digo isso apenas para fazer notar<br />

a existência de certa mentalidade, típica consciência<br />

apaziguadora, que transparece com frequência em<br />

alguns discursos sobre a Cultura Negra, e que a<br />

focam especificamente como influência, não<br />

frisando de sua autonomia e identidade, existência e<br />

ação. Algo equivalente a considerá-la relevante<br />

apenas do ponto de vista da miscigenação, do<br />

sincretismo, com alguma perda de identidade, como<br />

se a recuassem para a posição de objeto, e não<br />

tomada como ação de sujeitos atuantes e criativos.<br />

Penso, por exemplo, no caso de um carioca como eu<br />

que pode apreciar o samba de posse da informação<br />

formal de que ele representa algo da Cultura Negra,<br />

mesmo quando produzido por brancos, sem se dar<br />

conta do alcance real, vivo, e atuante dessa<br />

representação.<br />

Hoje compreendo perfeitamente que não há como<br />

separar da cultura negra um caráter combativo,<br />

afirmativo, expressão de uma consciência que<br />

inclui reflexos inevitáveis das condições históricas<br />

que nela interferiram e ainda interferem sob a<br />

forma de um contexto social. E quanto há de<br />

vitalidade nessa atuação, que além de produção de<br />

saber, de criação estética, de preservação de<br />

heranças, é também demanda afirmativa, crítica,<br />

reivindicativa por reconhecimento de espaço;<br />

contrapondo uma tensão necessária ao mito<br />

cômodo da democracia racial que vige entre nós!<br />

Não são essas, características de uma cultura viva<br />

que requer distinção real como co-formadora<br />

vigorosa do nosso Ethos, não se coformando em ser<br />

absorvida como mera influência secundária na<br />

nossa formação?<br />

“Fitai vossos olhos inamovíveis sobre os vossos<br />

filhos, aos quais se ordena<br />

Que deem a vida como o pobre sua derradeira<br />

veste<br />

Que respondamos “presente” ao renascer do<br />

mundo,<br />

Qual fermento necessário à farinha branca<br />

Pois quem ensinaria o ritmo ao falecido mundo das<br />

máquinas e dos canhões?<br />

Quem daria o grito de alegria para despertar<br />

mortos e órfãos à aurora?<br />

Dizei, quem poderia restituir a memória da vida ao<br />

homem desesperançado?<br />

Chamam-nos homens do algodão, do café, do óleo,<br />

Chamam-nos homens da morte<br />

Somos os homens da dança, cujos pés se revigoram<br />

ferindo o rude chão!”<br />

(Leopold Sedar Senghor, Oração às Máscaras)<br />

***<br />

“Olá, Negro! O dia está nascendo!<br />

O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que<br />

vem vindo?<br />

Olá, Negro!<br />

Olá, Negro!”<br />

(Jorge de Lima, in Poemas Negros)<br />

Natural do estado do Rio de Janeiro, é<br />

artista plástico e poeta (ainda não editado).<br />

Escreve nos blogs Diário Extrovertido<br />

http://diarioextrovertido.blogspot.com/<br />

e O Azul Temporário<br />

http://azultemporario.blogspot.com/<br />

MARCANTONIO Seus trabalhos em artes plásticas podem<br />

COSTA ser vistos no blog-portfólio<br />

Cadernos de Arte<br />

http://cadernosdearte.wordpress.com/<br />

página 54

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