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STORYTELLER<br />
id-work/iStock<br />
Eram os tempos da MPM<br />
Era um <strong>de</strong>spautério, mas ninguém tinha<br />
coragem <strong>de</strong> mexer com a Filomena, um<br />
pouco por respeito, um pouco por medo<br />
LuLa Vieira<br />
Outro dia, na mesa do bar, o rumo da prosa<br />
acabou indo para a velha MPM, lugar<br />
que todo mundo que teve o privilégio <strong>de</strong><br />
trabalhar morre <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>, uma agência<br />
que conseguiu reunir alguns dos melhores<br />
caracteres que a propaganda teve em toda<br />
sua história. Falo <strong>de</strong> chefes, gerentes e dos<br />
próprios donos, pessoas quer chegam a ser<br />
folclóricas no respeito pelos colegas e – em<br />
muitos casos – na generosida<strong>de</strong>. Eu não trabalhei<br />
na MPM, mas conheci vários <strong>de</strong> seus<br />
antigos profissionais, cuja relação preencheria<br />
esta página. Nenhum <strong>de</strong>les escreveu<br />
livro <strong>de</strong> autoajuda nem vive <strong>de</strong> dar palestras<br />
sobre espírito <strong>de</strong> equipe, talvez por isso<br />
mesmo tenham criado um ambiente <strong>de</strong> trabalho<br />
insuperável. É claro, como em todos<br />
os casos parecidos, po<strong>de</strong> ter havido uma<br />
sacanagem, uma inveja, uma puxada <strong>de</strong> tapete,<br />
afinal era uma agência <strong>de</strong> propaganda<br />
não o Jardim do É<strong>de</strong>n. Mas na média, numa<br />
empresa que ao longo <strong>de</strong> sua vida <strong>de</strong>ve ter<br />
dado emprego a alguns milhares <strong>de</strong> profissionais,<br />
a MPM tem um espaço reservado<br />
entre os lugares <strong>de</strong> sonho para trabalhar.<br />
Como sempre, tudo começa <strong>de</strong> cima, e<br />
os três donos, Mafuz, Petrôneo e Macedo<br />
são patrões queridos até hoje e é comum<br />
alguém se lembrar com sauda<strong>de</strong> e gratidão<br />
alguma passagem que revela o tino comercial,<br />
a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer negócios e <strong>de</strong><br />
tratar as pessoas com empatia. Uma das<br />
histórias que eu mais gosto é uma parábola<br />
<strong>de</strong>ssa característica da agência. Quando a<br />
MPM foi fundada, em Porto Alegre, a primeira<br />
funcionária contratada foi a moça do<br />
chimarrão, que no resto do Brasil também<br />
é conhecida como a moça do café e hoje foi<br />
<strong>de</strong>vidamente substituída pela Nespresso,<br />
para se ver como involuímos. A funcionária<br />
se chamava Filomena e, além da água para<br />
a erva, ajudava em tudo, pois a agência<br />
inteira cabia numa sala, on<strong>de</strong> donos, poucos<br />
funcionários e algumas máquinas <strong>de</strong><br />
escrever dividiam espaço com pranchetas<br />
<strong>de</strong> segunda mão, alguns parcos aparelhos<br />
telefônicos e uma magnífica máquina <strong>de</strong><br />
fax, maravilha tecnológica. Com o tempo,<br />
as coisas foram mudando e a MPM se tornou<br />
a maior agência do Brasil, com a unida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Porto Alegre instalada num prédio<br />
especialmente construído, um palácio,<br />
quase um ponto turístico. De uma <strong>de</strong> suas<br />
janelas, o redator Luis Fernando Veríssimo<br />
via os navios saindo para o mar do porto<br />
do Guaíba. A única que mudou, mas para<br />
pior, foi a Filomena, pois o tempo <strong>de</strong> casa<br />
lhe dava uma certa sensação <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>.<br />
Também começou a ficar um tanto<br />
preguiçosa e meio inconveniente, com um<br />
vocabulário digno das piores rodas <strong>de</strong> tavolagem.<br />
E começou a criar regras para facilitar<br />
sua vida. Começou por diminuir as<br />
rodadas <strong>de</strong> café e, aos poucos, foi restringindo<br />
a liberalida<strong>de</strong>, terminando por servir<br />
apenas duas vezes ao dia, às 10 da manhã<br />
e às 3 da tar<strong>de</strong>. Quem quisesse em outras<br />
horas, que fosse ao bolicho, ora porra. Era<br />
um <strong>de</strong>spautério, mas ninguém tinha coragem<br />
<strong>de</strong> mexer com a Filomena, um pouco<br />
por respeito, um pouco por medo. E a qualida<strong>de</strong><br />
do serviço foi caindo tanto que um dia<br />
ela <strong>de</strong>cretou que não traria mais adoçante<br />
na ban<strong>de</strong>ja, porque isso era coisa <strong>de</strong> viado.<br />
Muita gente teve <strong>de</strong> trazer adoçante <strong>de</strong> casa.<br />
Até que um dia a Companhia <strong>de</strong> Petróleo<br />
Ipiranga marcou uma reunião às 11 horas da<br />
manhã, na agência. E uma comissão formada<br />
pelo atendimento foi procurar o Mafuz<br />
para ver se conseguia que o café fosse servido,<br />
embora fora do horário. Em resumo,<br />
o pessoal foi pedir ao Mafuz que usasse sua<br />
influência junto a Filomena, se é que ele tinha<br />
alguma. Mafuz, solenemente, chamou<br />
a moça na sala da presidência e trancou-se<br />
com ela, enquanto o pessoal ficou do lado<br />
<strong>de</strong> fora esperando o resultado. Lá <strong>de</strong>ntro o<br />
presi<strong>de</strong>nte da casa iniciou um discurso lembrando<br />
a importância <strong>de</strong> fazer uma exceção<br />
no horário do café, uma vez que toda a prosperida<strong>de</strong><br />
da empresa se <strong>de</strong>via à confiança<br />
inicial da Ipiranga, que era um cliente pioneiro,<br />
que merecia este gesto <strong>de</strong> gratidão e<br />
reconhecimento, e por aí afora. Filomena<br />
nem esperou o fim da história e interrompeu<br />
mimosamente: “Se é assim, Mafuz, por que<br />
você não dá o cu para eles?” E foi embora.<br />
Mafuz foi até a sala <strong>de</strong> espera e <strong>de</strong>clarou à<br />
equipe: “Pessoal, a reunião foi terrível!” E a<br />
Ipiranga ficou sem café.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira@grupomesa.com.br<br />
10 6 <strong>de</strong> <strong>agosto</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark