04.08.2018 Views

edição de 6 de agosto de 2018

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

STORYTELLER<br />

id-work/iStock<br />

Eram os tempos da MPM<br />

Era um <strong>de</strong>spautério, mas ninguém tinha<br />

coragem <strong>de</strong> mexer com a Filomena, um<br />

pouco por respeito, um pouco por medo<br />

LuLa Vieira<br />

Outro dia, na mesa do bar, o rumo da prosa<br />

acabou indo para a velha MPM, lugar<br />

que todo mundo que teve o privilégio <strong>de</strong><br />

trabalhar morre <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>, uma agência<br />

que conseguiu reunir alguns dos melhores<br />

caracteres que a propaganda teve em toda<br />

sua história. Falo <strong>de</strong> chefes, gerentes e dos<br />

próprios donos, pessoas quer chegam a ser<br />

folclóricas no respeito pelos colegas e – em<br />

muitos casos – na generosida<strong>de</strong>. Eu não trabalhei<br />

na MPM, mas conheci vários <strong>de</strong> seus<br />

antigos profissionais, cuja relação preencheria<br />

esta página. Nenhum <strong>de</strong>les escreveu<br />

livro <strong>de</strong> autoajuda nem vive <strong>de</strong> dar palestras<br />

sobre espírito <strong>de</strong> equipe, talvez por isso<br />

mesmo tenham criado um ambiente <strong>de</strong> trabalho<br />

insuperável. É claro, como em todos<br />

os casos parecidos, po<strong>de</strong> ter havido uma<br />

sacanagem, uma inveja, uma puxada <strong>de</strong> tapete,<br />

afinal era uma agência <strong>de</strong> propaganda<br />

não o Jardim do É<strong>de</strong>n. Mas na média, numa<br />

empresa que ao longo <strong>de</strong> sua vida <strong>de</strong>ve ter<br />

dado emprego a alguns milhares <strong>de</strong> profissionais,<br />

a MPM tem um espaço reservado<br />

entre os lugares <strong>de</strong> sonho para trabalhar.<br />

Como sempre, tudo começa <strong>de</strong> cima, e<br />

os três donos, Mafuz, Petrôneo e Macedo<br />

são patrões queridos até hoje e é comum<br />

alguém se lembrar com sauda<strong>de</strong> e gratidão<br />

alguma passagem que revela o tino comercial,<br />

a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer negócios e <strong>de</strong><br />

tratar as pessoas com empatia. Uma das<br />

histórias que eu mais gosto é uma parábola<br />

<strong>de</strong>ssa característica da agência. Quando a<br />

MPM foi fundada, em Porto Alegre, a primeira<br />

funcionária contratada foi a moça do<br />

chimarrão, que no resto do Brasil também<br />

é conhecida como a moça do café e hoje foi<br />

<strong>de</strong>vidamente substituída pela Nespresso,<br />

para se ver como involuímos. A funcionária<br />

se chamava Filomena e, além da água para<br />

a erva, ajudava em tudo, pois a agência<br />

inteira cabia numa sala, on<strong>de</strong> donos, poucos<br />

funcionários e algumas máquinas <strong>de</strong><br />

escrever dividiam espaço com pranchetas<br />

<strong>de</strong> segunda mão, alguns parcos aparelhos<br />

telefônicos e uma magnífica máquina <strong>de</strong><br />

fax, maravilha tecnológica. Com o tempo,<br />

as coisas foram mudando e a MPM se tornou<br />

a maior agência do Brasil, com a unida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Porto Alegre instalada num prédio<br />

especialmente construído, um palácio,<br />

quase um ponto turístico. De uma <strong>de</strong> suas<br />

janelas, o redator Luis Fernando Veríssimo<br />

via os navios saindo para o mar do porto<br />

do Guaíba. A única que mudou, mas para<br />

pior, foi a Filomena, pois o tempo <strong>de</strong> casa<br />

lhe dava uma certa sensação <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>.<br />

Também começou a ficar um tanto<br />

preguiçosa e meio inconveniente, com um<br />

vocabulário digno das piores rodas <strong>de</strong> tavolagem.<br />

E começou a criar regras para facilitar<br />

sua vida. Começou por diminuir as<br />

rodadas <strong>de</strong> café e, aos poucos, foi restringindo<br />

a liberalida<strong>de</strong>, terminando por servir<br />

apenas duas vezes ao dia, às 10 da manhã<br />

e às 3 da tar<strong>de</strong>. Quem quisesse em outras<br />

horas, que fosse ao bolicho, ora porra. Era<br />

um <strong>de</strong>spautério, mas ninguém tinha coragem<br />

<strong>de</strong> mexer com a Filomena, um pouco<br />

por respeito, um pouco por medo. E a qualida<strong>de</strong><br />

do serviço foi caindo tanto que um dia<br />

ela <strong>de</strong>cretou que não traria mais adoçante<br />

na ban<strong>de</strong>ja, porque isso era coisa <strong>de</strong> viado.<br />

Muita gente teve <strong>de</strong> trazer adoçante <strong>de</strong> casa.<br />

Até que um dia a Companhia <strong>de</strong> Petróleo<br />

Ipiranga marcou uma reunião às 11 horas da<br />

manhã, na agência. E uma comissão formada<br />

pelo atendimento foi procurar o Mafuz<br />

para ver se conseguia que o café fosse servido,<br />

embora fora do horário. Em resumo,<br />

o pessoal foi pedir ao Mafuz que usasse sua<br />

influência junto a Filomena, se é que ele tinha<br />

alguma. Mafuz, solenemente, chamou<br />

a moça na sala da presidência e trancou-se<br />

com ela, enquanto o pessoal ficou do lado<br />

<strong>de</strong> fora esperando o resultado. Lá <strong>de</strong>ntro o<br />

presi<strong>de</strong>nte da casa iniciou um discurso lembrando<br />

a importância <strong>de</strong> fazer uma exceção<br />

no horário do café, uma vez que toda a prosperida<strong>de</strong><br />

da empresa se <strong>de</strong>via à confiança<br />

inicial da Ipiranga, que era um cliente pioneiro,<br />

que merecia este gesto <strong>de</strong> gratidão e<br />

reconhecimento, e por aí afora. Filomena<br />

nem esperou o fim da história e interrompeu<br />

mimosamente: “Se é assim, Mafuz, por que<br />

você não dá o cu para eles?” E foi embora.<br />

Mafuz foi até a sala <strong>de</strong> espera e <strong>de</strong>clarou à<br />

equipe: “Pessoal, a reunião foi terrível!” E a<br />

Ipiranga ficou sem café.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira@grupomesa.com.br<br />

10 6 <strong>de</strong> <strong>agosto</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!