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STORYTELLER<br />
ferrantraite/iStock<br />
Sou um criminoso<br />
O <strong>de</strong>stino não dá oportunida<strong>de</strong>s.<br />
Você tem <strong>de</strong> fazê-las<br />
LuLa Vieira<br />
Existem mil maneiras <strong>de</strong> matar uma<br />
mulher. Eu escolhi a mais idiota. Quer<br />
dizer, corrigindo, não arquitetei. Mas aproveitei.<br />
Ou seja: achei que o <strong>de</strong>stino tinha<br />
me dado aquela oportunida<strong>de</strong>. Como sempre,<br />
errei. O <strong>de</strong>stino não dá oportunida<strong>de</strong>s.<br />
Você tem <strong>de</strong> fazê-las. Mas, idiota, achei que<br />
tudo que eu tinha <strong>de</strong>sejado na vida, matá-<br />
-la, surgira como uma dádiva. E eu simplesmente<br />
aceitei. É melhor, já que comecei,<br />
contar os <strong>de</strong>talhes.<br />
Não tenho i<strong>de</strong>ia quem queira saber como<br />
foi um assassinato <strong>de</strong> alguém sem importância,<br />
cometido por outro alguém <strong>de</strong>simportante.<br />
Mas, sei lá, dizem que há malucos<br />
para tudo. Se fosse em um país mais civilizado<br />
eu enten<strong>de</strong>ria. Um assassinato po<strong>de</strong><br />
virar manchete <strong>de</strong> jornal ou top trend na<br />
internet em qualquer país europeu. Mas no<br />
Brasil os assassinatos fazem fila para aparecer<br />
e até urubu é seletivo e só come gente<br />
famosa. No Brasil, sem ser celebrida<strong>de</strong>, não<br />
se ganha <strong>de</strong>staque na lista dos mortos por<br />
violência, a não ser que essa violência seja<br />
extremamente criativa ou fuja dos padrões.<br />
No meu caso, assassino e assassinada totalmente<br />
<strong>de</strong>simportantes, se acontecer <strong>de</strong><br />
ganhar uma linha em alguma reportagem<br />
será porque o redator resolveu aproveitar<br />
nossos nomes e mostrar inteligência. “Margarida<br />
morta a golpes <strong>de</strong> Machado”. Você<br />
enten<strong>de</strong>u. Machado é meu nome, Margarida,<br />
o da falecida. Falecida, enten<strong>de</strong>u? Vai<br />
virar vítima só quando alguém <strong>de</strong>sconfiar<br />
que não foi aci<strong>de</strong>nte o que aconteceu com<br />
ela. Milhares <strong>de</strong> pessoas escorregam na escada,<br />
caem e quebram o pescoço todos os<br />
dias. Principalmente se a escada é escorregadia,<br />
como a escada <strong>de</strong> nossa garagem, revestida<br />
<strong>de</strong> ladrilhos e com uma fina camada<br />
<strong>de</strong> fuligem. Nós somos classe média-média.<br />
Temos uma casa classe média, com um<br />
carro classe média na garagem, num bairro<br />
classe média. Vamos ao shopping passear,<br />
almoçamos num restaurante a quilo<br />
na Praça <strong>de</strong> Alimentação e pegamos um<br />
cineminha no sábado. Não temos filhos.<br />
Não tinha nenhuma razão para matá-la.<br />
Então, ela não foi morta. Simplesmente ela<br />
morreu, coitada, caindo <strong>de</strong> uma escada que<br />
leva à garagem.<br />
Então para que a morte <strong>de</strong>la vire notícia<br />
<strong>de</strong> jornal, é preciso que alguém <strong>de</strong>sconfie<br />
que não foi aci<strong>de</strong>nte. Só eu sei que não foi e<br />
já fico pensando nela como assassinada. É<br />
um problema a cabeça da gente. Ela morreu<br />
por aci<strong>de</strong>nte. Porque escorregou na escada<br />
da garagem e rolou uma porção <strong>de</strong> <strong>de</strong>graus<br />
até se estatelar ao lado do carro. É bem verda<strong>de</strong><br />
que a filha da puta caiu viva, falou até<br />
palavrão, como seu estilo boca-suja. Mas<br />
interrompi seu “putaqueopariu” com uma<br />
porrada nos cornos. Quer dizer, segurei a<br />
escrota pelos cabelos e bati com a cabeça<br />
<strong>de</strong>la no chão <strong>de</strong> cimento.<br />
Se fossem outras as circunstâncias, outras<br />
pessoas, outras vidas, seria o caso <strong>de</strong><br />
registrar as suas últimas palavras como<br />
um legado às gerações futuras. Mas não<br />
vejo quem se beneficiaria sabendo que<br />
Margarida revirou os olhos e <strong>de</strong>ixou para<br />
a posterida<strong>de</strong> apenas uma expressão:<br />
“caralhooooooooo”. Com um ar <strong>de</strong> espanto<br />
que não teve nem quando conheceu o<br />
meu impávido colosso, apresentado com<br />
toda formalida<strong>de</strong> também numa garagem.<br />
Engraçado estou escrevendo uma<br />
confissão sem precisar.<br />
Bem, o fato é que hoje estou sozinho.<br />
Não me arrependo <strong>de</strong> ter matado minha<br />
mulher. Há anos ela não me ouvia, ou seja,<br />
ela me matou antes <strong>de</strong> eu matá-la. Pelo menos<br />
eu fui explícito. A escrota não. Matou-<br />
-me <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. O triste disso tudo era que<br />
eu não podia contar para ninguém. Agora<br />
eu pensei: foda-se. Tenho uma história.<br />
Finalmente alguém vai me ouvir. A merda<br />
vai ser provar que não sou louco.<br />
Não quero ficar no hospício contando que<br />
matei minha mulher e ouvir <strong>de</strong> volta que<br />
meu interlocutor invadiu a Rússia. Tenho<br />
dois problemas: acreditarem que a morte<br />
<strong>de</strong> minha mulher não foi aci<strong>de</strong>nte e que não<br />
estou maluco. Preciso achar um bom advogado.<br />
Você conhece algum? Se for mulher,<br />
melhor ainda. Eu preciso <strong>de</strong> uma advogada<br />
para fu<strong>de</strong>r com o cliente. Enten<strong>de</strong>ram?<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
jornal propmark - <strong>18</strong> <strong>de</strong> março <strong>de</strong> <strong>2019</strong> 29