16.03.2019 Views

edição de 18 de março de 2019

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

STORYTELLER<br />

ferrantraite/iStock<br />

Sou um criminoso<br />

O <strong>de</strong>stino não dá oportunida<strong>de</strong>s.<br />

Você tem <strong>de</strong> fazê-las<br />

LuLa Vieira<br />

Existem mil maneiras <strong>de</strong> matar uma<br />

mulher. Eu escolhi a mais idiota. Quer<br />

dizer, corrigindo, não arquitetei. Mas aproveitei.<br />

Ou seja: achei que o <strong>de</strong>stino tinha<br />

me dado aquela oportunida<strong>de</strong>. Como sempre,<br />

errei. O <strong>de</strong>stino não dá oportunida<strong>de</strong>s.<br />

Você tem <strong>de</strong> fazê-las. Mas, idiota, achei que<br />

tudo que eu tinha <strong>de</strong>sejado na vida, matá-<br />

-la, surgira como uma dádiva. E eu simplesmente<br />

aceitei. É melhor, já que comecei,<br />

contar os <strong>de</strong>talhes.<br />

Não tenho i<strong>de</strong>ia quem queira saber como<br />

foi um assassinato <strong>de</strong> alguém sem importância,<br />

cometido por outro alguém <strong>de</strong>simportante.<br />

Mas, sei lá, dizem que há malucos<br />

para tudo. Se fosse em um país mais civilizado<br />

eu enten<strong>de</strong>ria. Um assassinato po<strong>de</strong><br />

virar manchete <strong>de</strong> jornal ou top trend na<br />

internet em qualquer país europeu. Mas no<br />

Brasil os assassinatos fazem fila para aparecer<br />

e até urubu é seletivo e só come gente<br />

famosa. No Brasil, sem ser celebrida<strong>de</strong>, não<br />

se ganha <strong>de</strong>staque na lista dos mortos por<br />

violência, a não ser que essa violência seja<br />

extremamente criativa ou fuja dos padrões.<br />

No meu caso, assassino e assassinada totalmente<br />

<strong>de</strong>simportantes, se acontecer <strong>de</strong><br />

ganhar uma linha em alguma reportagem<br />

será porque o redator resolveu aproveitar<br />

nossos nomes e mostrar inteligência. “Margarida<br />

morta a golpes <strong>de</strong> Machado”. Você<br />

enten<strong>de</strong>u. Machado é meu nome, Margarida,<br />

o da falecida. Falecida, enten<strong>de</strong>u? Vai<br />

virar vítima só quando alguém <strong>de</strong>sconfiar<br />

que não foi aci<strong>de</strong>nte o que aconteceu com<br />

ela. Milhares <strong>de</strong> pessoas escorregam na escada,<br />

caem e quebram o pescoço todos os<br />

dias. Principalmente se a escada é escorregadia,<br />

como a escada <strong>de</strong> nossa garagem, revestida<br />

<strong>de</strong> ladrilhos e com uma fina camada<br />

<strong>de</strong> fuligem. Nós somos classe média-média.<br />

Temos uma casa classe média, com um<br />

carro classe média na garagem, num bairro<br />

classe média. Vamos ao shopping passear,<br />

almoçamos num restaurante a quilo<br />

na Praça <strong>de</strong> Alimentação e pegamos um<br />

cineminha no sábado. Não temos filhos.<br />

Não tinha nenhuma razão para matá-la.<br />

Então, ela não foi morta. Simplesmente ela<br />

morreu, coitada, caindo <strong>de</strong> uma escada que<br />

leva à garagem.<br />

Então para que a morte <strong>de</strong>la vire notícia<br />

<strong>de</strong> jornal, é preciso que alguém <strong>de</strong>sconfie<br />

que não foi aci<strong>de</strong>nte. Só eu sei que não foi e<br />

já fico pensando nela como assassinada. É<br />

um problema a cabeça da gente. Ela morreu<br />

por aci<strong>de</strong>nte. Porque escorregou na escada<br />

da garagem e rolou uma porção <strong>de</strong> <strong>de</strong>graus<br />

até se estatelar ao lado do carro. É bem verda<strong>de</strong><br />

que a filha da puta caiu viva, falou até<br />

palavrão, como seu estilo boca-suja. Mas<br />

interrompi seu “putaqueopariu” com uma<br />

porrada nos cornos. Quer dizer, segurei a<br />

escrota pelos cabelos e bati com a cabeça<br />

<strong>de</strong>la no chão <strong>de</strong> cimento.<br />

Se fossem outras as circunstâncias, outras<br />

pessoas, outras vidas, seria o caso <strong>de</strong><br />

registrar as suas últimas palavras como<br />

um legado às gerações futuras. Mas não<br />

vejo quem se beneficiaria sabendo que<br />

Margarida revirou os olhos e <strong>de</strong>ixou para<br />

a posterida<strong>de</strong> apenas uma expressão:<br />

“caralhooooooooo”. Com um ar <strong>de</strong> espanto<br />

que não teve nem quando conheceu o<br />

meu impávido colosso, apresentado com<br />

toda formalida<strong>de</strong> também numa garagem.<br />

Engraçado estou escrevendo uma<br />

confissão sem precisar.<br />

Bem, o fato é que hoje estou sozinho.<br />

Não me arrependo <strong>de</strong> ter matado minha<br />

mulher. Há anos ela não me ouvia, ou seja,<br />

ela me matou antes <strong>de</strong> eu matá-la. Pelo menos<br />

eu fui explícito. A escrota não. Matou-<br />

-me <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. O triste disso tudo era que<br />

eu não podia contar para ninguém. Agora<br />

eu pensei: foda-se. Tenho uma história.<br />

Finalmente alguém vai me ouvir. A merda<br />

vai ser provar que não sou louco.<br />

Não quero ficar no hospício contando que<br />

matei minha mulher e ouvir <strong>de</strong> volta que<br />

meu interlocutor invadiu a Rússia. Tenho<br />

dois problemas: acreditarem que a morte<br />

<strong>de</strong> minha mulher não foi aci<strong>de</strong>nte e que não<br />

estou maluco. Preciso achar um bom advogado.<br />

Você conhece algum? Se for mulher,<br />

melhor ainda. Eu preciso <strong>de</strong> uma advogada<br />

para fu<strong>de</strong>r com o cliente. Enten<strong>de</strong>ram?<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

jornal propmark - <strong>18</strong> <strong>de</strong> março <strong>de</strong> <strong>2019</strong> 29

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!