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edição de 30 de setembro de 2019

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STORYTELLER<br />

Stock Photography/Unsplash<br />

Zé, lembrei docê<br />

Quem é do ramo pula por cima <strong>de</strong><br />

baboseiras e se esquece <strong>de</strong> repetir<br />

o já consagrado e vai em frente<br />

LuLa Vieira<br />

Há muitos anos, o gran<strong>de</strong> Zé Rodrix e eu<br />

fomos convidados para fazer uma entrevista<br />

na TV Cultura para contar histórias<br />

da propaganda e lembrar alguns jingles.<br />

Conversadores compulsivos, o programa<br />

já estava no ar e nós ficamos no fundo do<br />

palco esperando ser chamados, contando<br />

casos <strong>de</strong> nossas vidas, até levarmos um esporro<br />

da coor<strong>de</strong>nadora <strong>de</strong> estúdio para não<br />

atrapalhar o jornal, que estava indo ao ar ao<br />

vivo.<br />

Naquele dia, quem assistiu ao noticiário<br />

da hora do almoço não <strong>de</strong>ve ter entendido<br />

nada. Por trás das vozes do casal <strong>de</strong> âncoras,<br />

ouviam-se gargalhadas completamente<br />

fora <strong>de</strong> hora. Éramos nós.<br />

Entre as histórias que rolaram e ajudaram<br />

a transformar o noticioso numa zona,<br />

a mais mimosa foi a do presi<strong>de</strong>nte da Nestlé<br />

e do Tico, sócio do Zé. Quer que eu conte?<br />

Segura aí. Acontece que entrou num cliente<br />

(não vou dizer o nome), um jovem trainee<br />

vindo <strong>de</strong> um MBA qualquer.<br />

Daqueles, que acham que conheceram<br />

Jesus, viram a luz, foram abençoados pela<br />

verda<strong>de</strong> e a verda<strong>de</strong> os salvou. Não no sentido<br />

real, mas no figurado, simplesmente a<br />

ignorância acrescida <strong>de</strong> meia dúzia <strong>de</strong> receitas<br />

<strong>de</strong> bolo.<br />

Um monte <strong>de</strong> teorias amalgamados com<br />

a insegurança resulta nisso. Um sujeitinho<br />

metido a besta, falando uma algaravia misto<br />

<strong>de</strong> português e inglês, cuspindo clichês a<br />

toda hora e achando que veio salvar a porra<br />

do marketing no Brasil.<br />

Pois bem, o tal trainee em uma semana<br />

já tinha virado uma lenda. Reprovava tudo<br />

que lhe caía nas mãos, fazendo aquelas observações<br />

irrespondíveis sobre psicologia<br />

do target, objetivos estratégicos, distorções<br />

cognitivas e metalinguagem do nervo<br />

anal. E, é claro, o novo, surpreen<strong>de</strong>nte e revolucionário<br />

mundo digital. Naquela época<br />

ainda mais suscetível a invenções e teorias<br />

do que hoje.<br />

Normalmente quem é do ramo pula por<br />

cima <strong>de</strong> baboseiras e se esquece <strong>de</strong> repetir<br />

o já consagrado e vai em frente. Mas, o rapaz<br />

surpreen<strong>de</strong>u alguns <strong>de</strong>savisados e infernizou<br />

a vida <strong>de</strong> muita gente.<br />

Até que chegou o dia da apresentação<br />

<strong>de</strong> um jingle criado pelo Tico. E era na produtora<br />

(ninguém teria coragem <strong>de</strong> propor<br />

uma conference call para isso). Sabedor da<br />

encrenca, Tico pediu que no meio da reunião<br />

alguém ligasse dizendo-se fulano <strong>de</strong><br />

tal (esqueci o nome), presi<strong>de</strong>nte da Nestlé.<br />

E assim foi feito.<br />

Após a apresentação do jingle, entra a secretária<br />

e avisa: “Senhor Tico, ao telefone o<br />

doutor fulano <strong>de</strong> tal, presi<strong>de</strong>nte da Nestlé”.<br />

Tico pega o telefone, saúda o tal presi<strong>de</strong>nte<br />

com a maior secura, ouve por alguns instantes<br />

e grita:<br />

- O queeeeeeê? Não gostou do jingle? E<br />

quem é você para gostar ou não gostar? Só<br />

porque é um presi<strong>de</strong>ntinho <strong>de</strong> multinacional<br />

acha que vai se meter no meu trabalho?<br />

Você toca alguma merda, além <strong>de</strong> punheta?<br />

Não vou fazer mais porra nenhuma para<br />

você. Tenho mais o que fazer. Enfia a Nestlé<br />

no cu! Insensível! Calma o caralho, porque<br />

não é o seu trabalho! É o meu talento,<br />

viadinho! E não me encha mais o saco!” E<br />

<strong>de</strong>sligou violentamente.<br />

Após a gritaria para o telefone mudo<br />

(mas, para todos os efeitos com o presi<strong>de</strong>nte<br />

da Nestlé no outro lado da linha),<br />

voltou-se para o trainee e perguntou candidamente:<br />

- E aí, o que você achou <strong>de</strong> nosso jingle?<br />

Não é preciso dizer que teve tudo aprovado.<br />

Se o doido tratava assim o presi<strong>de</strong>nte<br />

da Nestlé (aliás, ídolo do tal trainee), imagina<br />

o que não faria com o próprio se este<br />

tivesse a coragem <strong>de</strong> fazer qualquer observação?<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

24 <strong>30</strong> <strong>de</strong> <strong>setembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark

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