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STORYTELLER<br />
Stock Photography/Unsplash<br />
Zé, lembrei docê<br />
Quem é do ramo pula por cima <strong>de</strong><br />
baboseiras e se esquece <strong>de</strong> repetir<br />
o já consagrado e vai em frente<br />
LuLa Vieira<br />
Há muitos anos, o gran<strong>de</strong> Zé Rodrix e eu<br />
fomos convidados para fazer uma entrevista<br />
na TV Cultura para contar histórias<br />
da propaganda e lembrar alguns jingles.<br />
Conversadores compulsivos, o programa<br />
já estava no ar e nós ficamos no fundo do<br />
palco esperando ser chamados, contando<br />
casos <strong>de</strong> nossas vidas, até levarmos um esporro<br />
da coor<strong>de</strong>nadora <strong>de</strong> estúdio para não<br />
atrapalhar o jornal, que estava indo ao ar ao<br />
vivo.<br />
Naquele dia, quem assistiu ao noticiário<br />
da hora do almoço não <strong>de</strong>ve ter entendido<br />
nada. Por trás das vozes do casal <strong>de</strong> âncoras,<br />
ouviam-se gargalhadas completamente<br />
fora <strong>de</strong> hora. Éramos nós.<br />
Entre as histórias que rolaram e ajudaram<br />
a transformar o noticioso numa zona,<br />
a mais mimosa foi a do presi<strong>de</strong>nte da Nestlé<br />
e do Tico, sócio do Zé. Quer que eu conte?<br />
Segura aí. Acontece que entrou num cliente<br />
(não vou dizer o nome), um jovem trainee<br />
vindo <strong>de</strong> um MBA qualquer.<br />
Daqueles, que acham que conheceram<br />
Jesus, viram a luz, foram abençoados pela<br />
verda<strong>de</strong> e a verda<strong>de</strong> os salvou. Não no sentido<br />
real, mas no figurado, simplesmente a<br />
ignorância acrescida <strong>de</strong> meia dúzia <strong>de</strong> receitas<br />
<strong>de</strong> bolo.<br />
Um monte <strong>de</strong> teorias amalgamados com<br />
a insegurança resulta nisso. Um sujeitinho<br />
metido a besta, falando uma algaravia misto<br />
<strong>de</strong> português e inglês, cuspindo clichês a<br />
toda hora e achando que veio salvar a porra<br />
do marketing no Brasil.<br />
Pois bem, o tal trainee em uma semana<br />
já tinha virado uma lenda. Reprovava tudo<br />
que lhe caía nas mãos, fazendo aquelas observações<br />
irrespondíveis sobre psicologia<br />
do target, objetivos estratégicos, distorções<br />
cognitivas e metalinguagem do nervo<br />
anal. E, é claro, o novo, surpreen<strong>de</strong>nte e revolucionário<br />
mundo digital. Naquela época<br />
ainda mais suscetível a invenções e teorias<br />
do que hoje.<br />
Normalmente quem é do ramo pula por<br />
cima <strong>de</strong> baboseiras e se esquece <strong>de</strong> repetir<br />
o já consagrado e vai em frente. Mas, o rapaz<br />
surpreen<strong>de</strong>u alguns <strong>de</strong>savisados e infernizou<br />
a vida <strong>de</strong> muita gente.<br />
Até que chegou o dia da apresentação<br />
<strong>de</strong> um jingle criado pelo Tico. E era na produtora<br />
(ninguém teria coragem <strong>de</strong> propor<br />
uma conference call para isso). Sabedor da<br />
encrenca, Tico pediu que no meio da reunião<br />
alguém ligasse dizendo-se fulano <strong>de</strong><br />
tal (esqueci o nome), presi<strong>de</strong>nte da Nestlé.<br />
E assim foi feito.<br />
Após a apresentação do jingle, entra a secretária<br />
e avisa: “Senhor Tico, ao telefone o<br />
doutor fulano <strong>de</strong> tal, presi<strong>de</strong>nte da Nestlé”.<br />
Tico pega o telefone, saúda o tal presi<strong>de</strong>nte<br />
com a maior secura, ouve por alguns instantes<br />
e grita:<br />
- O queeeeeeê? Não gostou do jingle? E<br />
quem é você para gostar ou não gostar? Só<br />
porque é um presi<strong>de</strong>ntinho <strong>de</strong> multinacional<br />
acha que vai se meter no meu trabalho?<br />
Você toca alguma merda, além <strong>de</strong> punheta?<br />
Não vou fazer mais porra nenhuma para<br />
você. Tenho mais o que fazer. Enfia a Nestlé<br />
no cu! Insensível! Calma o caralho, porque<br />
não é o seu trabalho! É o meu talento,<br />
viadinho! E não me encha mais o saco!” E<br />
<strong>de</strong>sligou violentamente.<br />
Após a gritaria para o telefone mudo<br />
(mas, para todos os efeitos com o presi<strong>de</strong>nte<br />
da Nestlé no outro lado da linha),<br />
voltou-se para o trainee e perguntou candidamente:<br />
- E aí, o que você achou <strong>de</strong> nosso jingle?<br />
Não é preciso dizer que teve tudo aprovado.<br />
Se o doido tratava assim o presi<strong>de</strong>nte<br />
da Nestlé (aliás, ídolo do tal trainee), imagina<br />
o que não faria com o próprio se este<br />
tivesse a coragem <strong>de</strong> fazer qualquer observação?<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
24 <strong>30</strong> <strong>de</strong> <strong>setembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark