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STORYTELLER<br />
Raphael Nogueira/Unsplash<br />
O Rio que passou<br />
Assim como Ipanema era a <strong>de</strong>vassidão,<br />
Tijuca era a pátria da família. Ainda que<br />
nem tanto, mas também nem tão pouco<br />
LULA VIEIRA<br />
bairro <strong>de</strong> Ipanema, antes <strong>de</strong> ser paraíso das<br />
O imobiliárias, era um exemplo para a humanida<strong>de</strong>.<br />
Durante um pouco mais do que duas<br />
décadas foi a prova real da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />
viver feliz cuidando basicamente do espírito.<br />
Ipanema era um espaço on<strong>de</strong> o lugar-comum<br />
que fala que “ser” é mais importante que “ter”<br />
podia ser vivido. Não – distraída leitora, caro<br />
leitor –, não estou usando as lentes rosadas <strong>de</strong><br />
se olhar o passado, para transformar em recordação<br />
o que não existiu. Nem sou <strong>de</strong> Ipanema.<br />
Quando cheguei na cida<strong>de</strong>, as placas imobiliárias<br />
já eram mais comuns que as moças <strong>de</strong><br />
corpo dourado a caminho do mar. Ainda havia<br />
moças <strong>de</strong> corpo dourado, ainda se ia ao mar,<br />
mas o espírito do doce balanço já estava começando<br />
a se per<strong>de</strong>r. Alguns resíduos persistiam.<br />
Quando me tornei carioca ainda existia, por<br />
exemplo, o Pasquim. Na churrascaria Plataforma,<br />
a mesa ao lado esquerdo da entrada ainda<br />
era do Tom Jobim. E o maître Garrincha ainda<br />
atravessava o salão com o prato <strong>de</strong> aço inox on<strong>de</strong><br />
fatias diáfanas <strong>de</strong> maminha viajavam até as<br />
mesas, para casarem com a Farofa Dolabella e<br />
com o molho que a campanha. Uma bobagem<br />
dita assim, mas um compromisso <strong>de</strong> prazer<br />
quando materializada.<br />
O barulho do restaurante era infernal, pois<br />
o salão era imenso, sem nenhum tratamento<br />
acústico. E a <strong>de</strong>coração, a mais bizarra possível.<br />
Uma tentativa nada eficiente <strong>de</strong> imitar<br />
uma floresta. Mas funcionava, pois fazia parte<br />
da <strong>de</strong>coração, a freguesia. Detalhe estarrecedor:<br />
a Plataforma não era em Ipanema. Era um<br />
Posto Avançado. Somente o térreo, diga-se.<br />
Pois subindo a escada lateral os turistas chegavam<br />
num gigantesco espaço on<strong>de</strong> rolava o<br />
mais plastificado Carnaval. Um esquindô, esquindô<br />
em várias línguas, <strong>de</strong>screvendo uma<br />
cida<strong>de</strong> que nunca existiu: São Sebastião do Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro dos Turistas. Tinha uma tintura <strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong>: mulatas gostozérrimas, samba e malandros.<br />
No palco e servindo as mesas. Só faltava<br />
alma. E alma era o que sobrava no rés do<br />
chão. O Plataforma era meio caro, assim como<br />
o Antonio’s, outro templo, este em Ipanema.<br />
Havia também <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> barzinhos on<strong>de</strong> se<br />
podia encher a cara com total dignida<strong>de</strong>, usando<br />
como vestimenta apenas o uniforme do<br />
bairro: um calção e uma camisa folgada. Para<br />
as mulheres, uma “saída da praia” que se opõe<br />
às congêneres “saídas <strong>de</strong> praia” porque eram<br />
mais autênticas e mais reveladoras. Como eu<br />
dizia, podia se viver com pouco dinheiro em<br />
Ipanema. O que não era aconselhável era tentar<br />
viver com pouco talento. As pessoas eram<br />
severamente julgadas quando não conseguiam<br />
provar que eram incapazes <strong>de</strong> severamente julgar<br />
alguém. Se é que me enten<strong>de</strong>m. Mas, <strong>de</strong>ixa<br />
pra lá. Sem problemas, a gente se vê mais tar<strong>de</strong><br />
na casa <strong>de</strong> Nara Leão. Ipanema era só felicida<strong>de</strong><br />
e o paspalho que aqui escreve pegou tudo isso,<br />
embora confesse que minha cintura ainda era<br />
meio durona para participar do banquete. Comia-se<br />
muito, e bem, em Ipanema, em todos<br />
os sentidos. Para meu azar, quando assinei o<br />
contrato para vir morar no Rio e ser diretor da<br />
JMM, que tinha a conta do Banco Nacional, esqueci<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar por escrito uma singela exigência.<br />
Morar em Ipanema. Meu patrão (João Moacir<br />
<strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros) me instalou num belíssimo<br />
apartamento. Mas na Rua Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bonfim,<br />
em plena Tijuca. Nada contra. Muito menos a<br />
favor. Sem família ainda, e sem vergonha, fui<br />
morar num bairro careta.<br />
Assim como Ipanema era a <strong>de</strong>vassidão, Tijuca<br />
era a pátria da família. Ainda que nem<br />
tanto, mas também nem tão pouco. Eu tinha<br />
janelões abertos para o <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> famílias.<br />
Mas ninguém <strong>de</strong> tanga, ninguém <strong>de</strong> toalha<br />
enrolada <strong>de</strong>ixando antever morenas coxas,<br />
nenhum Jaguar (o cartunista, claro), nenhum<br />
Tom Jobim, nenhuma Leila Diniz. Quando o<br />
contrato do apartamento venceu e eu po<strong>de</strong>ria<br />
mudar <strong>de</strong> bairro, o Pasquim já tinha acabado,<br />
o pessoal do andar <strong>de</strong> cima do Plataforma já<br />
estava <strong>de</strong>scendo para o rés do chão, Ipanema<br />
ainda tinha algum brilho. Mas já em <strong>de</strong>cadência.<br />
E, (oh meus pecados!) surgia um novo<br />
bairro, a antítese <strong>de</strong> Ipanema, uma Zona Norte<br />
no mar – São Conrado. De tanto fazer anúncio<br />
ven<strong>de</strong>ndo as maravilhas daquele bairro, acabei<br />
acreditando. E fui morar en São Conrado.<br />
Uma espécie <strong>de</strong> Madureira rica e al mare. Por<br />
sorte, meu prédio era meio irreverente e um<br />
<strong>de</strong> meus vizinhos, entre outros, era Raul Seixas.<br />
Só para se ter uma i<strong>de</strong>ia do clima do prédio.<br />
O síndico era outro maluco, seguidor fiel<br />
do mais doido regulamento <strong>de</strong> edifício jamais<br />
criado no Brasil. Como exemplo, ele criou<br />
uma extensão do playground em plena praia<br />
<strong>de</strong> São Conrado, <strong>de</strong> tal forma aparatado que a<br />
ninguém ocorreu perguntar se havia alguma<br />
legislação que <strong>de</strong>sse guarida ao, chamemos,<br />
“avançado”. Quando me mu<strong>de</strong>i <strong>de</strong> lá, porque<br />
a minha mulher engravidou e eu precisava <strong>de</strong><br />
mais espaço, a “área avançada” na areia ainda<br />
pertencia ao prédio, numa interpretação muito<br />
liberal do chamado “usocapião”. Porque eu<br />
estou contando isso? Porque tive <strong>de</strong> ir à rua. E<br />
meu táxi passou por uma cida<strong>de</strong> na qual não<br />
consegui me lembrar <strong>de</strong> algum dia ter morado.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
jornal propmark - 8 <strong>de</strong> <strong>junho</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> 19