Chicos 67 20.01.2022
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Vale das corujas
Chicos
*Eltània André
Não importa se Deus existe
ou não, mas como ele goza.
Jacques Lacan
A manhã de primavera inundada de sol
era o convite à quietude. Adônis faz questão
da boa convivência, acena para um e outro
com o melhor semblante. Embora tenha
uma certeza: se uma casa é considerada mal
-assombrada, os moradores se transformam
em fantasmas aos olhos de quem a olha.
Não, nunca quis assombrar ou ser importunado.
Bastava ter que suportar as corujasmecânicas
de dentes afiados e ameaçadores
que vagam pelos telhados. Malabaristas da
casa ancestral. Vigias impiedosas e rotineiras.
Da varanda do quarto andar, Adônis observa
as crianças brincando ao redor da piscina,
na área de recreação do prédio, enquanto
se serve de uma xícara de chá. Vê
quando o filho do vizinho chuta a bola em
direção ao telhado da garagem, vê quando
Beatriz trepa no baixo muro sem se importar
em exibir a calcinha do biquíni enfiada no
bumbum. Ele sente uma espécie de corrente
energética relampejar a partir do abdômen.
Tenta se recompor, tenta pensar em outra
coisa, mira os barquinhos brancos no tecido
felpudo do roupão. Precisa de uma imagem
banal para reacomodar o mal-estar. Teme,
entretanto, não ser possível recuar tantas vezes.
Nunca quis ter filhos, sempre se sentiu
inabilitado para a tarefa de pai. A algazarra
das crianças ecoou em seu espírito como a
sirene de uma ambulância. A pequena Beatriz
o ameaça sem intenção.
Entre um gole e outro do chá, encana o
lamento antiquíssimo: antes eu não tivesse
nascido.
Compelido, regressa ao passado: quando
pequenino foi escalado como gandula na
partida das equipes júnior, o que não durou
muito, pois distraía-se e era lento para recolher
a bola. Naquele lugar experimentou o
seu primeiro beijo. Ana era dois anos mais
nova do que ele, mas soube invocar o deleite
enfiando a língua dentro de sua boca. Ela
queria a caixinha de cigarrinho de chocolate
Pan que ele exibia nas mãos. Um beijo por
um doce.
Uma camiseta por uma chupadinha. Igor
ambicionava possuir uma camisa oficial do
time pelo qual torcia, igual àquela que Adônis
ganhou num Natal. Adônis perguntoulhe:
você faria qualquer coisa para ir ao próximo
campeonato com esta camisa? Igor
respondeu-lhe: eu mataria um búfalo por
ela, disse de sopro com os olhos reluzentes.
A negociação foi legitimada. Horas mais tarde,
Igor vomitava e Adônis fechava a braguilha
da bermuda, depois de tirar a camisa
e jogá-la no chão. Adônis foi para casa co-
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