22.01.2022 Views

Chicos 67 20.01.2022

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Vale das corujas

Chicos

*Eltània André

Não importa se Deus existe

ou não, mas como ele goza.

Jacques Lacan

A manhã de primavera inundada de sol

era o convite à quietude. Adônis faz questão

da boa convivência, acena para um e outro

com o melhor semblante. Embora tenha

uma certeza: se uma casa é considerada mal

-assombrada, os moradores se transformam

em fantasmas aos olhos de quem a olha.

Não, nunca quis assombrar ou ser importunado.

Bastava ter que suportar as corujasmecânicas

de dentes afiados e ameaçadores

que vagam pelos telhados. Malabaristas da

casa ancestral. Vigias impiedosas e rotineiras.

Da varanda do quarto andar, Adônis observa

as crianças brincando ao redor da piscina,

na área de recreação do prédio, enquanto

se serve de uma xícara de chá. Vê

quando o filho do vizinho chuta a bola em

direção ao telhado da garagem, vê quando

Beatriz trepa no baixo muro sem se importar

em exibir a calcinha do biquíni enfiada no

bumbum. Ele sente uma espécie de corrente

energética relampejar a partir do abdômen.

Tenta se recompor, tenta pensar em outra

coisa, mira os barquinhos brancos no tecido

felpudo do roupão. Precisa de uma imagem

banal para reacomodar o mal-estar. Teme,

entretanto, não ser possível recuar tantas vezes.

Nunca quis ter filhos, sempre se sentiu

inabilitado para a tarefa de pai. A algazarra

das crianças ecoou em seu espírito como a

sirene de uma ambulância. A pequena Beatriz

o ameaça sem intenção.

Entre um gole e outro do chá, encana o

lamento antiquíssimo: antes eu não tivesse

nascido.

Compelido, regressa ao passado: quando

pequenino foi escalado como gandula na

partida das equipes júnior, o que não durou

muito, pois distraía-se e era lento para recolher

a bola. Naquele lugar experimentou o

seu primeiro beijo. Ana era dois anos mais

nova do que ele, mas soube invocar o deleite

enfiando a língua dentro de sua boca. Ela

queria a caixinha de cigarrinho de chocolate

Pan que ele exibia nas mãos. Um beijo por

um doce.

Uma camiseta por uma chupadinha. Igor

ambicionava possuir uma camisa oficial do

time pelo qual torcia, igual àquela que Adônis

ganhou num Natal. Adônis perguntoulhe:

você faria qualquer coisa para ir ao próximo

campeonato com esta camisa? Igor

respondeu-lhe: eu mataria um búfalo por

ela, disse de sopro com os olhos reluzentes.

A negociação foi legitimada. Horas mais tarde,

Igor vomitava e Adônis fechava a braguilha

da bermuda, depois de tirar a camisa

e jogá-la no chão. Adônis foi para casa co-

53

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!