Chicos 67 20.01.2022
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Chicos
todos diziam, sério, austero, assíduo e pontual. E
mais confiável do que qualquer máquina moderna
para guardar em segredo uma grande quantidade
de números e palavras. Senão, não justificava
tanto silêncio e o seu jeito arredio e lacônico.
Falava pouco, quase nada, mesmo em casa,
com dona Laura, falava o mínimo necessário.
E muitas vezes, quando chegava mais tarde, o
que se ouvia era um ou outro suspiro, como
quem está exausto e puxa o ar mais fundo para
soltá-lo em seguida, devagar, como se soprasse
dentro de si a poeira de seus segredos. Às vezes,
dormindo, sentava na cama e falava, inconsciente,
alguma coisa ininteligível, palavras e números
desconexos, e depois deitava-se novamente. Dona
Laura já estava acostumada e não o acordava,
não comentava nada, e não fazia inúteis perguntas.
Acho que o trabalho de Amon era mesmo
engolir palavras e números e enterrá-los em seu
inviolável silêncio, como se fossem tesouros. Vivia
a acumular palavras e números em seus silêncios,
como os rentistas acumulam mais e mais
dinheiro. Às vezes, saía do trabalho com o rosto
meio avermelhado contrastando com a brancura
dos braços, caminhava até o carro e se demorava
bastante para arrancar. Só saía quando seu
rosto já tinha voltado à cor branca natural, à sua
palidez de cadáver.
O silêncio o acompanhava até à casa. Dona
Laura, resignada, deixava o marido com os
seus segredos profissionais, seus resmungos noturnos
e seus sonos entrecortados sabe-se lá por
quais sonhos e pesadelos. À mesa, ele tamborilava
o tampo com os dedos, mas não parecia percutir
nenhum ritmo musical; parecia um tique,
uma mania, como se digitasse num teclado qualquer
de alguma máquina num escritório cheio de
papéis, canetas, telefones, computadores, tensões,
ordens, comandos e senhas. Comia pouco,
quase não mexia no prato. Depois, sentava-se na
sala para assistir ao jornal da tv e, nos intervalos
comerciais, levantava-se, caminhava até a cozinha,
tomava um café e beliscava alguma coisa,
um biscoito, uma torrada ou um pedaço de pão,
e retornava ao sofá mastigando lentamente, com
a boca fechada, como a impedir a passagem de
alguma palavra que tentasse escapar.
Numa tarde de agosto, Amon surpreendeu
a todos quando saiu do trabalho às dezoito horas,
nem um minuto a mais ou a menos, fato
que nunca ocorrera antes. A brancura de seus
braços magros com as veias visivelmente azuis
contrastava com o rubor de seu rosto. Um vermelho
escuro, quase roxo, nem parecia o mesmo
que chegara pela manhã, com sua brancura dos
pés à cabeça, pontualmente, às dez para as oito
e cruzara a porta de vidro grosso e escuro que
não permitia distinguir as pessoas lá dentro.
Acho que naquele dia, seu trabalho foi intenso e
deve ter engolido uma grande quantidade de palavras,
números e segredos. Quem sabe tenha
ingerido palavras indigestas e apresentava, então,
sintomas de indigestão ou congestão alimentar.
Não caminhou para o estacionamento,
seguiu em outra direção com passos lentos e vacilantes
como se não tivesse certeza do rumo a
ser tomado. De vez em quando parava, atraves-
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