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perambulando de ci<strong>da</strong>de em ci<strong>da</strong>de, a declamar seus versos.<br />
Chegou-se mesmo a duvi<strong>da</strong>r de sua existência e de que a Ilía<strong>da</strong> e a<br />
Odisséia fossem obra de uma só pessoa. Poderiam ser coletâneas de<br />
contos populares de antigos aedos e, ain<strong>da</strong> que tenha existido um<br />
poeta chamado Homero que realizou a compilação desse material e<br />
enriqueceu com contribuições próprias, o certo é que essas obras<br />
contêm passagens procedentes de épocas diversas.<br />
Além de informar sobre a organização <strong>da</strong> polis arcaica, as<br />
epopéias homéricas são a primeira expressão documenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> visão<br />
mitopoética dos gregos. A intervenção benéfica ou maléfica dos<br />
deuses está no âmago <strong>da</strong> psicologia dos heróis de Homero e<br />
coman<strong>da</strong> suas ações. Com efeito, a Ilía<strong>da</strong> e a Odisséia apresentamse<br />
marca<strong>da</strong>s pela presença constante de poderes superiores que<br />
interferem na luta entre gregos e troianos (tema <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>) e nas<br />
aventuras de Ulisses ou Odisseu (tema <strong>da</strong> Odisséia).<br />
Nas epopéias homéricas, mesmo quando representam forças <strong>da</strong><br />
natureza, os deuses revestem-se de forma humana; esse<br />
antropomorfismo atribui-lhes aspecto familiar e até certo ponto<br />
inteligível, afastando os terrores relativos a forças obscuras e<br />
incontroláveis. Sobrepondo-se a arcaicas formas de religiosi<strong>da</strong>de,<br />
Homero exclui do Olimpo, mundo dos deuses, as formas<br />
monstruosas <strong>da</strong> mesma maneira que exclui do culto as práticas<br />
mágicas.<br />
A racionalização do divino conduz a uma religiosi<strong>da</strong>de<br />
“exterior”, que mais convém ao público a que se dirigem as<br />
epopéias: à polis aristocrática.<br />
Essa religiosi<strong>da</strong>de “apolínea” permanecerá como uma <strong>da</strong>s<br />
linhas fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> religião grega: a do sentido político que<br />
servirá para justificar as tradições e instituições <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de-estado.<br />
É por oposição aos homens que os deuses homéricos se<br />
definem: ao contrário dos humanos, seres terrenos, os deuses são<br />
princípios celestes; à diferença dos mortais, escapam à velhice e à<br />
morte. Escapam à morte, mas não são eternos nem estão fora do<br />
tempo: em princípio pode-se saber de quem ca<strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de é filho<br />
ou filha. A imortali<strong>da</strong>de, esta sim, está indissoluvelmente liga<strong>da</strong> aos<br />
deuses que, por oposição aos humanos mortais, são frequentemente<br />
designados de “os imortais” e constituem, na sua organização e em<br />
seu comportamento, uma socie<strong>da</strong>de imortal de nobres celestes.<br />
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Em Homero, a noção de virtude (areté) significava o mais alto<br />
ideal cavalheiresco aliado a uma conduta cortesã e ao heroísmo<br />
guerreiro. Identifica<strong>da</strong> a atributos <strong>da</strong> nobreza, a areté, em seu mais<br />
amplo sentido, designava não apenas a excelência humana, como<br />
também a superiori<strong>da</strong>de de seres não-humanos, como a força dos<br />
deuses ou a rapidez dos cavalos nobres. Em geral, a virtude<br />
significava força e destreza dos guerreiros ou dos lutadores, valor<br />
heróico intimamente vinculado à força física. A virtude em Homero<br />
é, portanto, atributo dos nobres, os aristoi; uma minoria que se eleva<br />
acima <strong>da</strong> multidão de homens comuns.<br />
HESÍODO HESÍODO (século VIII a.C.)<br />
O complexo processo de formação do povo e <strong>da</strong> cultura grega<br />
determinou o aparecimento dentro do mundo helênico, de áreas<br />
bastante diferencia<strong>da</strong>s, não só quanto às ativi<strong>da</strong>des econômicas e às<br />
instituições políticas, mas também quanto à própria mentali<strong>da</strong>de e<br />
suas manifestações nos campos <strong>da</strong> arte, <strong>da</strong> religião, do pensamento.<br />
À Grécia Continental, mais presa às tradições <strong>da</strong> polis arcaica,<br />
contrapunham-se as colônias <strong>da</strong> Ásia Menor, situa<strong>da</strong>s em regiões<br />
mais distantes pelo intercâmbio comercial e cultural com outros<br />
povos. Da Jônia surgem as epopéias homéricas e, a partir do século<br />
VI a.C., as primeiras formulações filosóficas e científicas dos<br />
pensadores de Mileto, de Samos, de Éfeso. Entre esses dois<br />
momentos de manifestação do processo de racionalização <strong>da</strong> cultura<br />
grega, situa-se a obra poética de Hesíodo – voz que se eleva <strong>da</strong><br />
Grécia Continental – conjugando as conquistas <strong>da</strong> nova mentali<strong>da</strong>de<br />
surgi<strong>da</strong> nas colônias <strong>da</strong> Ásia Menor com os temas extraídos de sua<br />
gente e de sua terra.<br />
Hesíodo foi um mestre <strong>da</strong> poesia instrutiva; viveu em Ascra, na<br />
Beócia, e é exaltado agora por seus dois poemas, A Teogonia e Os<br />
trabalhos e os dias. O primeiro pode ser chamado de genealogia dos<br />
deuses. Os trabalhos e os dias referem-se, basicamente, a regras de<br />
agricultura e navegação, embora também forneça um calendário de<br />
dias felizes e infelizes e ofereça uma homilia moral.<br />
Com Hesíodo dá-se a aparição do subjetivo na literatura. Na<br />
épica mais antiga, o poeta era o simples veículo anônimo <strong>da</strong>s Musas;<br />
já Hesíodo “assina” sua obra para fazer história pessoal.