13.03.2015 Views

por Le Clézio revelado O mundo - Fonoteca Municipal de Lisboa

por Le Clézio revelado O mundo - Fonoteca Municipal de Lisboa

por Le Clézio revelado O mundo - Fonoteca Municipal de Lisboa

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Uma aventura,<br />

em <strong>por</strong>tuguês<br />

Há uma espécie <strong>de</strong> “êxtase material” em <strong>Le</strong> Clézio. O autor recua para o interior,<br />

é aquilo que está a escrever, não comenta, vive. Alexandra Lucas Coelho<br />

Ele diz sempre<br />

que não precisa<br />

<strong>de</strong> um<br />

escritório<br />

para escrever.<br />

Esta é uma das<br />

mesas on<strong>de</strong><br />

escreve, em<br />

Nice<br />

É provável que <strong>Le</strong> Clézio - que fala<br />

espanhol, além <strong>de</strong> francês, inglês,<br />

dialectos ameríndios e um pouco<br />

<strong>de</strong> crioulo da Maurícia - consiga ler<br />

<strong>por</strong>tuguês. Mas quer as conheça<br />

ou não, tem razões para saudar a<br />

fortuna <strong>de</strong> algumas traduções suas<br />

em Portugal.<br />

Talvez tudo tenha começado com<br />

“Deserto”, traduzido <strong>por</strong> Fernanda<br />

Botelho (Dom Quixote, 1986).<br />

Escrito <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter viajado<br />

com a sua mulher marroquina,<br />

Jemia, pelas paisagens <strong>de</strong><br />

Saguiet el Hamra, em busca dos<br />

antepassados <strong>de</strong>la, “Deserto” tem<br />

como protagonista Lalla, uma<br />

nativa <strong>de</strong>sse outro lado que para os<br />

europeus é o Norte <strong>de</strong> África. Lalla<br />

nasce à beira-mar, numa pobreza<br />

<strong>de</strong> barracos com zinco e papel<br />

alcatroado, on<strong>de</strong> a chuva tilinta, e<br />

<strong>Le</strong> Clézio faz viver esse outro lado<br />

como se nunca tivesse conhecido<br />

vida diferente. Esta é a parte<br />

chamada “Felicida<strong>de</strong>”. Depois há a<br />

parte chamada “A vida na terra dos<br />

escravos”: Lalla na gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Marselha, que é o outro lado<br />

para os norte-africanos - imigração,<br />

humilhação, solidão, violência.<br />

Mas intercalada ao longo da<br />

história <strong>de</strong> Lalla está a caminhada<br />

dos seus antepassados no começo<br />

do século XX, os homens, mulheres<br />

e crianças que seguem Ma Al<br />

Ainine, o homem santo, <strong>de</strong>cidido a<br />

resistir ao invasor francês. Sabemos<br />

como a História acaba - todos<br />

chacinados em Agadir - mas não<br />

sabíamos o que foi essa caminhada.<br />

Como quase sempre em <strong>Le</strong><br />

Clézio - e roubando um título seu -,<br />

“Deserto” é uma espécie <strong>de</strong> “êxtase<br />

material”, em que as palavras<br />

dão o que os sentidos sentem. O<br />

autor está tão recuado no interior<br />

das personagens que ninguém<br />

Como quase sempre<br />

em <strong>Le</strong> Clézio - e<br />

roubando um título<br />

seu -, “Deserto” é uma<br />

espécie <strong>de</strong> “êxtase<br />

material”, em que as<br />

palavras dão o que os<br />

sentidos sentem.<br />

O autor está tão<br />

recuado no interior<br />

das personagens que<br />

ninguém se lembra<br />

que ele existe. O autor<br />

é aquilo que está<br />

a escrever, e <strong>por</strong>tanto<br />

não comenta, vive<br />

se lembra que ele existe. O autor<br />

é aquilo que está a escrever, e<br />

<strong>por</strong>tanto não comenta, vive. Inchalhe<br />

a língua, diz o nome nómada das<br />

estrelas, sente a água fria <strong>de</strong>pois<br />

da água quente no “hammam” das<br />

mulheres, o primeiro amante entra<br />

nele. O autor vai aos do outro lado da<br />

colina e <strong>de</strong>volve-lhes a dignida<strong>de</strong>, ao<br />

experimentar ser eles.<br />

Arte poética<br />

Do belo ensaio que <strong>Le</strong> Clézio<br />

<strong>de</strong>dicou a Henri Michaux (“Vers<br />

les icebergs”, Fata Morgana, 1978),<br />

Herberto Hel<strong>de</strong>r mudou para<br />

<strong>por</strong>tuguês “Um poema (Iniji) que<br />

não é como os outros” (“As Magias”,<br />

Assírio & Alvim, 1988) - e é toda uma<br />

arte poética.<br />

No ano seguinte, Júlio Henriques<br />

traduziu para a “Fenda” (com o título<br />

“Indio Branco”) o livro que <strong>Le</strong> Clézio<br />

trouxe da sua primeira estadia com<br />

os índios no Panamá, “Haï”, reflexão<br />

crítica do que é o encontro oci<strong>de</strong>ntal<br />

com o <strong>mundo</strong> índio - um “marchand”<br />

envia os seus caçadores e um<br />

objecto <strong>de</strong> arte torna-se uma arma.<br />

Depois, 1994 foi quase um ano <strong>Le</strong><br />

Clézio.<br />

Com tradução <strong>de</strong> Manuel Alberto<br />

saiu na Relógio d’Água “Diego e<br />

Frida”, uma biografia apaixonante<br />

e inteiramente lúcida. O mimetismo<br />

agudo <strong>de</strong> <strong>Le</strong> Clézio não tem nada<br />

<strong>de</strong> hagiográfico. Aqui está Diego,<br />

aqui está Frida, aqui está um amor<br />

monstruoso, aqui está o México.<br />

E em “Estrela Errante”, que Maria<br />

do Carmo Abreu traduziu para<br />

a Dom Quixote, é a Europa que<br />

emerge, a Europa da II Guerra, on<strong>de</strong><br />

os ju<strong>de</strong>us são menos que pessoas, e<br />

<strong>de</strong>pois a Eretz Israel que se fez com<br />

todos esses europeus que a Europa<br />

não quis - entre os árabes que já lá<br />

estavam, e passaram a não ter lugar.<br />

O livro acompanha Esther, e após<br />

o momento em que ela se cruza<br />

com a palestiniana Nejma há-<strong>de</strong><br />

acompanhar Nejma.<br />

Aqui estão os comboios do<br />

Holocausto, as fugas pelas<br />

montanhas, o frio, a morte dos velhos<br />

e dos fracos, a esperança <strong>de</strong> um<br />

barco que não seja capturado pelos<br />

ingleses até Eretz Israel, aqui estão<br />

os “kibbutz”, o país novo. E aqui está<br />

a súbita <strong>de</strong>spossessão <strong>de</strong> quem vivia<br />

das oliveiras e das cabras, e se viu<br />

arrancado ao presente e ao futuro,<br />

à espera da peste e da morte num<br />

campo <strong>de</strong> refugiados miserável,<br />

cada vez mais cheio.<br />

Como sempre em <strong>Le</strong> Clézio, o<br />

paraíso coexiste com o inferno,<br />

como um amor que <strong>de</strong>sperta no<br />

meio da guerra entre dois fugitivos<br />

que se alimentam <strong>de</strong> uma cabra a<br />

amamentar, e quando se <strong>de</strong>itam é<br />

como se mais nada existisse.<br />

Em “O Caçador <strong>de</strong> Tesouros”,<br />

ainda <strong>de</strong> 1994, também pulsam<br />

esses instantes genesíacos,<br />

momentos <strong>de</strong> Paulo e Virgínia<br />

nos primeiros tempos da criação,<br />

crianças a caminho <strong>de</strong> adultos<br />

cercados <strong>por</strong> uma natureza<br />

prodigiosa, brutal.<br />

Aqui começam <strong>por</strong> ser dois<br />

irmãos, Alexis e Laura, com mãe e<br />

pai numa casa encantada. A mãe<br />

ensina a ler, o amigo indígena<br />

ensina a andar <strong>de</strong> barco, mas<br />

tudo po<strong>de</strong> a qualquer momento<br />

ser arrancado, como o telhado<br />

da casa <strong>por</strong> um ciclone, ou a vida<br />

dos que mandam pela fúria dos<br />

que obe<strong>de</strong>cem e têm fome. Lá<br />

em cima na montanha, longe da<br />

costa, moram os “manaf”, aqueles<br />

que <strong>de</strong>itariam ouro ao mar se o<br />

encontrassem - como o anel na<br />

barriga do tubarão, que aparece<br />

em “Deserto”. Mas os oci<strong>de</strong>ntais<br />

não são assim, têm um sangue <strong>de</strong><br />

garimpeiros, e Alexis quase morrerá<br />

<strong>por</strong> causa disso. Quando não é o<br />

ouro, é a guerra, essa febre.<br />

Um dos escritores <strong>de</strong> quem <strong>Le</strong><br />

Clézio falou no seu discurso Nobel<br />

foi Wilfried Owen, e são os poemas<br />

<strong>de</strong> Wilfried Owen que ecoam nas<br />

páginas terríveis em que “O Caçador<br />

<strong>de</strong> Tesouros” revive as trincheiras<br />

da I Guerra.<br />

Recentemente, além <strong>de</strong> “Raga”<br />

(ver texto principal), saíram “O<br />

Processo <strong>de</strong> Adão Pollo” (tradução<br />

<strong>de</strong> Manuel Villaver<strong>de</strong> Cabral<br />

na Europa-América) e “A Febre”<br />

(tradução <strong>de</strong> Liberto Cruz na<br />

Ulisseia). Mais interessante para<br />

quem quiser conhecer o percurso<br />

do autor do que interessante em<br />

si, a atmosfera cerebral, sufocante<br />

<strong>de</strong>stes dois primeiros livros<br />

sobrevive mal, 45 anos <strong>de</strong>pois.<br />

<strong>Le</strong> Clézio sentia que precisava<br />

<strong>de</strong> um choque físico e foi viver<br />

com os índios. Tinha razão. A sua<br />

verda<strong>de</strong>ira aventura começou aí.<br />

Armário <strong>de</strong><br />

uma das<br />

bibliotecas<br />

que ele herdou<br />

dos avós<br />

maurícios<br />

Ípsilon • Sexta-feira 9 Janeiro 2009 • 11

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!