13.03.2015 Views

por Le Clézio revelado O mundo - Fonoteca Municipal de Lisboa

por Le Clézio revelado O mundo - Fonoteca Municipal de Lisboa

por Le Clézio revelado O mundo - Fonoteca Municipal de Lisboa

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

À procura da fissura<br />

na cabeça das pessoas<br />

Dezasseis contos em que os protagonistas se colocam<br />

em situações insólitas: são as “Histórias Possíveis” <strong>de</strong><br />

David Machado, Prémio Branquinho da Fonseca e um<br />

talento raro <strong>de</strong> contador <strong>de</strong> histórias. João Bonifácio<br />

fotografia :: margarida dias | <strong>de</strong>sign :: vasco lopes<br />

Um homem que <strong>por</strong> amor procura<br />

<strong>de</strong>sesperadamente ser costurado.<br />

Uma mulher que já idosa arruína a<br />

vida com a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um prazer<br />

após uma vida inteira <strong>de</strong> ascetismo.<br />

Um rapaz que <strong>de</strong>strói a vida ao perseguir<br />

a memória do pai, esquecida <strong>por</strong><br />

insistir em respeitar a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />

<strong>de</strong> não ser fotografado. Um génio da<br />

música que abandona o seu talento<br />

inato para viver sossegadamente atrás<br />

<strong>de</strong> uma secretária. Um negociante que<br />

vê o amor como um negócio, até que<br />

a falência do seu corpo lhe torna a<br />

i<strong>de</strong>ia do amor insu<strong>por</strong>tável.<br />

Estas são algumas das personagens<br />

que surgem em “Histórias Possíveis”,<br />

livro <strong>de</strong> contos <strong>de</strong> David Machado que,<br />

sem nunca ser verda<strong>de</strong>iramente “fantástico”,<br />

respira essa atmosfera.<br />

Machado não gosta do termo “fantástico”<br />

mesmo que enquanto leitor aprecie<br />

o género. Ele gosta <strong>de</strong> cultores do<br />

“fantástico”, como Adolfo Bioy Casares,<br />

mas os seus escritores <strong>de</strong> eleição são<br />

mestres como Gabriel García Marquéz<br />

ou Mario Vargas Llosa. E prefere realçar<br />

que em cada um <strong>de</strong>stes contos há um<br />

acontecimento estranho.<br />

Cinco escassas páginas é a duração<br />

<strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>stas histórias, com a<br />

excepção das duas finais, que se esten<strong>de</strong>m<br />

até gigantescas nove. O uso <strong>de</strong>sta<br />

exacta dimensão - que implica contenção<br />

e compressão em cada texto - não<br />

foi ocasional, mas também não correspon<strong>de</strong>u<br />

a uma <strong>de</strong>scoberta literária da<br />

medida exacta a usar num conto.<br />

“O primeiro conto”, conta David, a<br />

comer um pastel <strong>de</strong> nata num café<br />

pacato na zona <strong>de</strong> Xabregas, <strong>Lisboa</strong>,<br />

“apareceu há uns anos quando um<br />

amigo ia fazer um suplemento para<br />

um jornal. Ele convidou-me a ocupar<br />

um espaço nesse suplemento com um<br />

conto <strong>de</strong>stas dimensões”. David escreveu-lhe<br />

“dois contos, com o mesmo<br />

tamanho”, mas <strong>de</strong>pois “o suplemento<br />

não avançou”. Só que entretanto<br />

Machado tinha gostado “bastante <strong>de</strong><br />

escrever aqueles textos”, cujas i<strong>de</strong>ias<br />

foi “buscar a um ca<strong>de</strong>rno que anda<br />

sempre comigo, em que aponto coisas”,<br />

<strong>por</strong> isso resolveu voltar com<br />

regularida<strong>de</strong> às i<strong>de</strong>ias esquecidas no<br />

ca<strong>de</strong>rno e manter a mesma passada<br />

em cada conto.<br />

É esta a génese <strong>de</strong> “Histórias Possíveis”,<br />

o livro em que David Machado se<br />

estreia nos contos. Não é, no entanto,<br />

a sua primeira obra, e apesar <strong>de</strong> novo<br />

(tem 30 anos) já teve algum reconhecimento<br />

- que <strong>de</strong>ve às crianças: ganhou<br />

o Prémio Branquinho da Fonseca (não<br />

<strong>por</strong> acaso, um contista <strong>de</strong> excepção)<br />

em 2005 com “A Noite dos Animais<br />

Inventados”, um livro infantil. Depois<br />

continuou a escrever livros para crianças<br />

enquanto tentava uma incursão<br />

pelos caminhos do fantástico, com “O<br />

Fabuloso Teatro do Gigante”, romance<br />

publicado em 2006.<br />

“O romance ven<strong>de</strong>u miseravelmente”,<br />

atira, sem ro<strong>de</strong>ios, o escritor.<br />

É um tipo <strong>de</strong> estatura média, largo <strong>de</strong><br />

ombros, com um brinco na orelha e<br />

ainda alguma cara <strong>de</strong> miúdo, que fala<br />

com relativo à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo -<br />

<strong>de</strong>sempoeirado e sem peneiras, notase-lhe<br />

amor às histórias. Com facilida<strong>de</strong><br />

discorre sobre as suas i<strong>de</strong>ias<br />

“O que me interessa é<br />

como aquilo que não<br />

existe po<strong>de</strong><br />

influenciar o que<br />

existe. Como é que a<br />

cabeça das pessoas<br />

aceita aquilo que é<br />

imaginação ao ponto<br />

<strong>de</strong> acreditar nisso”<br />

literárias, como lhe surgem, como as<br />

trabalha, como <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o que fazer<br />

com elas. Passa algum tempo a dizer<br />

que dá valor à estrutura, a explicar<br />

como procura “saber <strong>de</strong>finir os<br />

momentos do conto”. Não tenta dourar<br />

a pílula citando e recitando autores<br />

ou tentando mostrar erudição: nitidamente,<br />

ele tem prazer em conversar<br />

e pensa pela sua cabeça.<br />

Histórias da al<strong>de</strong>ia<br />

Passou os últimos anos a “ir falar a escolas<br />

com miúdos” e o que conta aos miúdos<br />

é esclarecedor da sua forma <strong>de</strong><br />

encarar a literatura: “Eu gosto <strong>de</strong> histórias.<br />

Quando vou falar com os miúdos<br />

começo <strong>por</strong> dizer exactamente isso:<br />

antes <strong>de</strong> gostar <strong>de</strong> escrever já gostava<br />

<strong>de</strong> histórias, <strong>de</strong> as ouvir, <strong>de</strong> as ver na<br />

televisão, no cinema, <strong>de</strong> as inventar<br />

para mim antes <strong>de</strong> dormir, quando era<br />

miúdo.” O melhor que a literatura lhe<br />

trouxe, foi “conseguir que as histórias<br />

dissessem mais do que eu pensava que<br />

podiam dizer”.<br />

Como foi escrito lá atrás, todas estas<br />

histórias são marcadas não <strong>por</strong> um<br />

imaginário fantástico, mas pelo menos<br />

pelo insólito: algo que as pessoas causam<br />

a si mesmas (ou às outras) sem<br />

consciência da consequência dos seus<br />

actos. “Sou muito racional e nada<br />

dado a superstições”, confessa David.<br />

“Por isso não posso dizer que o fantástico<br />

influencie a minha vida. O que<br />

me interessa é como aquilo que não<br />

existe po<strong>de</strong> influenciar o que existe.<br />

Como é que a cabeça das pessoas<br />

aceita aquilo que é imaginação ao<br />

ponto <strong>de</strong> acreditar nisso.”<br />

David dá o exemplo dos velhos nas<br />

al<strong>de</strong>ias. “As histórias que os velhos<br />

contam vão passando <strong>de</strong> gente em<br />

gente até que fazem parte da própria<br />

al<strong>de</strong>ia.” Ele pára <strong>por</strong> um pouco e continua:<br />

“Se um velho acredita em fantasmas,<br />

se calhar diz uma ladainha<br />

antes <strong>de</strong> ir para a cama. Aquilo tornouse<br />

a sua realida<strong>de</strong>.”<br />

Machado sabe do que fala quando<br />

menciona o exemplo da al<strong>de</strong>ia. O seu<br />

primeiro romance passava-se em<br />

Lagares, al<strong>de</strong>ia imaginária que agora<br />

retorna num dos contos <strong>de</strong> “Histórias<br />

Possíveis”, mas baseada em Ruivães,<br />

al<strong>de</strong>ia da avó, a que ainda regressa<br />

“pelo menos uma vez <strong>por</strong> ano, nas<br />

férias”, e on<strong>de</strong> passou “muito tempo”<br />

em miúdo, apesar <strong>de</strong> ser lisboeta. Esse<br />

universo interessa-lhe: “Tenho muitas<br />

histórias que partem <strong>de</strong> histórias que<br />

ouvi na al<strong>de</strong>ia on<strong>de</strong> a minha avó nasceu”,<br />

conta. No entanto, as histórias<br />

<strong>de</strong> “Histórias Possíveis” estão localizadas<br />

na cida<strong>de</strong>. (Embora não seja<br />

especificada, bem como o intervalo<br />

tem<strong>por</strong>al em que <strong>de</strong>correm. David<br />

também passa algum tempo a justificar<br />

estas opções, com a “liberda<strong>de</strong> do<br />

leitor para imaginar”.) Há uma boa<br />

razão para isso: “A maior parte <strong>de</strong>stas<br />

histórias surgiram <strong>de</strong> algo que me contaram<br />

ou que eu vi e tudo o que me<br />

contaram passava-se na cida<strong>de</strong>.”<br />

O que David faz neste livro é “pôr<br />

situações”. “Não precisamos <strong>de</strong> mais<br />

que uma situação para <strong>de</strong>finirmos uma<br />

faceta do ser humano”, diz, e <strong>de</strong>pois<br />

exemplifica com “A costura <strong>de</strong> Clemente”,<br />

conto em que um homem<br />

acaba a tentar ser costurado. “Eu estava<br />

na Argentina quando tive essa i<strong>de</strong>ia. Vi<br />

numa janela uma tabuleta a dizer:<br />

‘Fazem-se costuras’ e veio-me a i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> um homem que ia a essa loja fazer<br />

uma costura no próprio corpo.” Neste<br />

caso: “O que é que levaria um homem<br />

a fazer uma costura no corpo?” Isto, diz<br />

David, faz a sua cabeça ir “a lugares<br />

on<strong>de</strong> normalmente não iria”.<br />

Alvos e coelhos<br />

Começar com uma imagem ou uma<br />

i<strong>de</strong>ia e <strong>de</strong>pois tentar adivinhar o que<br />

leva a essa imagem ou i<strong>de</strong>ia foi o<br />

método utilizado em cada uma <strong>de</strong>stas<br />

histórias. Depois do dois contos iniciais,<br />

David sabia que lhe interessava<br />

contá-las, <strong>por</strong>que lhe agrada a “brevida<strong>de</strong><br />

do conto”. Nos romances, diz,<br />

“<strong>por</strong> vezes nota-se que há texto a mais.<br />

No conto tem <strong>de</strong> se ser mais certeiro”.<br />

Depois pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpa <strong>por</strong> já ter usado<br />

esta imagem numa entrevista antiga,<br />

mas repete-a <strong>por</strong>que lhe agrada: “O<br />

conto é acertar no alvo e o romance é<br />

caçar coelhos: po<strong>de</strong>s falhar muito<br />

tiros, im<strong>por</strong>ta é que acertes um.”<br />

O tamanho que se impôs viciou-o,<br />

ao ponto <strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> acabar o livro,<br />

ter dificulda<strong>de</strong> em escrever textos<br />

mais extensos. David, note-se, é um<br />

trabalhador que se senta “à secretária<br />

todos os dias, nem que seja para escrever<br />

uma frase, nem que seja para apagar<br />

a frase” que escreveu. Ele lê “tanto<br />

romance como conto” e quer “continuar<br />

a escrever romances”, mas “se<br />

tivesse <strong>de</strong> escolher” só um género<br />

“escrevia só contos”. Infelizmente,<br />

acrescenta, “os contos não ven<strong>de</strong>m<br />

muito”, o que lhe parece estranho<br />

“<strong>por</strong>que o conto encaixa naturalmente<br />

na vida das pessoas”.<br />

A finalizar pedimos-lhe uma possível<br />

<strong>de</strong>finição do livro ou <strong>de</strong>stas gentes<br />

que o povoam. Após uma pausa ele<br />

atira-se à tarefa com requinte: “Neste<br />

livro há fissuras na cabeça das pessoas:<br />

são pessoas que num <strong>de</strong>terminado<br />

momento da sua vida têm um<br />

pensamento ou com<strong>por</strong>tamento ligeiramente<br />

diferente do que é normal.”<br />

Depois acrescenta uma frase que lida<br />

e relida diz bem mais da fragilida<strong>de</strong><br />

do ser humano do que à primeira leitura<br />

po<strong>de</strong> parecer: “As fissuras no real<br />

só existem <strong>por</strong>que a cabeça das pessoas<br />

permitem que exista.”<br />

Ver crítica <strong>de</strong> livros pág. 31 e segs.<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

P ROJECTO<br />

E DUCATIVO<br />

<br />

Ípsilon • Sexta-feira 9 Janeiro 2009 • 15

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!