<strong>Prosa</strong>Reflexões sobre a poesiamigrante na ItáliaVera Lúcia <strong>de</strong> Oliveira“Amem o imigrante, porque vocês já foram imigrantes no Egito.”(DEUTERONÔMIO, 10,19)“Aminha pátria é a língua portuguesa”, escreveu o gran<strong>de</strong>poeta Fernando Pessoa; “o meu país é o meu corpo”,afirmou Tahar Lamri, escritor argelino que vive há muitos anos naItália e que escreve em italiano. Para os escritores, a pátria po<strong>de</strong> serum país, uma língua, uma história, o próprio corpo, a memória, a remoçãodo passado e o vazio que <strong>de</strong>riva <strong>de</strong>sse processo e que impõe anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recompor uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> em outro lugar, emoutro idioma. Po<strong>de</strong> ser também uma mala, com poucos objetos salvos<strong>de</strong> uma vida anterior, que eles arrastam como as pare<strong>de</strong>s da alma,como caracóis levando nas costas suas casas.Que tipo <strong>de</strong> relação instauram os poetas e os escritores nôma<strong>de</strong>s,migrantes ou mesmo exilados com os lugares e com as línguas emque vivem? Tais questões, também tão ligadas ao meu percurso poé-É Doutora emLínguas e LiteraturasIbéricas eIbero-Americanaspela Università <strong>de</strong>gliStudi di Palermo(Itália). EnsinaLiteratura Portuguesae <strong>Brasileira</strong> naUniversità <strong>de</strong>gli Studidi Perugia (Itália).Organizou antologias<strong>de</strong> vários poetasbrasileiros eportugueses.Entre os livrospublicados, <strong>de</strong>poesia e ensaios,estão Vennà C’anno,Fara, 2005; Storienella Storia:Le Parabole diGuimarães Rosa(ensaio), 2005;No Coração da Boca(poesia), 2006.173
Vera Lúcia <strong>de</strong> Oliveiratico entre duas línguas, e sobre as quais me <strong>de</strong>brucei prece<strong>de</strong>ntemente em outrosensaios, serão aqui brevemente focalizadas na literatura produzida por autoresestrangeiros que escolheram a língua italiana como língua literária, emparte <strong>de</strong> suas obras ou em toda a obra.A Itália, país que viveu um consistente movimento migratório, com milhões<strong>de</strong> italianos que se radicaram em muitos países, inclusive no Brasil (calcula-seque há 60 milhões <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong> origem italiana fora da Itália), vive hojeum processo inverso, ou seja, o <strong>de</strong> uma nação que se tornou meta <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong>número <strong>de</strong> imigrantes, alguns dos quais adotaram a língua italiana como língualiterária e poética. Tais escritores são geralmente <strong>de</strong>finidos pela crítica italianacomo “escritores migrantes” . 1Para a estudiosa Franca Sinopoli, o escritor migrante é “aquele que mudapátria e cultura, rejeitando os vínculos condicionantes do ambiente <strong>de</strong> origeme transformando em tema, em suas obras, a recusa da pátria se<strong>de</strong>ntária, constituídapor vínculos <strong>de</strong> sangue, solo, língua e cultura”. 2 E afirma ainda que serianecessária, para a abordagem <strong>de</strong> tal produção, não tanto uma hiperespecializaçãodos estudos <strong>de</strong>dicados à literatura italiana, no caso <strong>de</strong>sse país, mas umamudança muito mais profunda e radical, <strong>de</strong> horizontes, <strong>de</strong> perspectivas e <strong>de</strong>pressupostos críticos, que consi<strong>de</strong>rasse tal fenômeno <strong>de</strong>ntro dos diversos cruzamentose enfoques da literatura europeia da diáspora, ou seja, como um patrimôniotransnacional característico dos diversos países europeus. 3 Os própriosestudos comparatísticos interculturais se rearticulariam, assim, <strong>de</strong> formaa levar em conta textos literários provenientes <strong>de</strong> zonas e <strong>de</strong> cânones literáriosmuito distintos e diversificados.Na Itália, no entanto, muitos dos próprios autores englobados pela crítica emtal categoria, “literatura da migração”, que atesta a existência <strong>de</strong> um movimento1 Para se ter uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> quanto é amplo e articulado o fenômeno na Itália, ver a Banca <strong>de</strong> dados on-lineBASILI, organizada pelo Departamento <strong>de</strong> Italianística da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma La Sapienza: .2 SINOPOLI, F. “Postfazione – Scrivere nella Lingua <strong>de</strong>ll’Altro”. In: LECOMTE, Mia (a cura di). AiConfini <strong>de</strong>l Verso – Poesia <strong>de</strong>lla Migrazione in Italiano. Firenze: Casa Editrice Le Lettere, 2006. pp. 219-220.3 Ibi<strong>de</strong>m.174