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aya/iStock<br />
O caramujo, que representa o movimento Slow Food: comer <strong>de</strong>vagar é só a essência <strong>de</strong> uma causa<br />
Divulgação<br />
daí vem emitindo alertas importantes<br />
sobre a discrepância<br />
da superprodução <strong>de</strong> alimentos<br />
em nome da sacieda<strong>de</strong> da população<br />
mundial. A tradução<br />
simplista, “comer <strong>de</strong>vagar ou<br />
comida lenta” é só a essência <strong>de</strong><br />
toda uma causa que vem sendo<br />
articulada junto a foodies, entida<strong>de</strong>s,<br />
indústria e governos,<br />
que visa o alimento bom, limpo<br />
e justo. Segundo Petrini, uma<br />
espécie <strong>de</strong> Dom Quixote poético<br />
e cheio <strong>de</strong> frases <strong>de</strong> efeito, já<br />
são três décadas <strong>de</strong> militância<br />
confirmando que algo está fora<br />
da or<strong>de</strong>m. “De um lado, 800 milhões<br />
<strong>de</strong> pessoas passam fome,<br />
<strong>de</strong> outro dois bilhões sofrem<br />
dos malefícios da superalimentação.<br />
Temos produzido muita<br />
tecnologia e informação. Mas<br />
tecnologia e informação não são<br />
<strong>de</strong> comer! É preciso um retorno<br />
à valorização e ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da agricultura e do pastoreio”.<br />
Segundo ele, “foi no século<br />
16 que a horta foi parar na<br />
porta dos fundos, antes jardim e<br />
horta eram uma coisa só. Precisamos<br />
religar a beleza do plantio<br />
e do manejo da terra ao dia a<br />
dia, até nas gran<strong>de</strong>s metrópoles,<br />
para criar uma atmosfera nova<br />
<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social”.<br />
Ao contrário do que po<strong>de</strong>m<br />
pensar os mais puristas, o movimento<br />
não <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o vegetarianismo,<br />
mas sim valoriza a<br />
convivência harmoniosa entre<br />
os reinos animal e vegetal. Porque<br />
a terra sem animais vira um<br />
<strong>de</strong>serto e do <strong>de</strong>serto nada se tira<br />
da terra. Aí está uma questão<br />
nervosa, principalmente na socieda<strong>de</strong><br />
atual: o consumo consciente<br />
da carne. O recado “slow<br />
meat” é que se compreenda a<br />
Linguiça: produção <strong>de</strong> carnes envolve sistema bilionário<br />
Divulgação<br />
essência da vida, que se <strong>de</strong>fenda<br />
a diversida<strong>de</strong> e as diferenças<br />
<strong>de</strong> costumes e toda carne seja<br />
consi<strong>de</strong>rada como algo muito<br />
nobre. O consumo <strong>de</strong>ve ser feito<br />
com respeito, em pouca quantida<strong>de</strong><br />
e com mais qualida<strong>de</strong>, para<br />
interromper o ciclo <strong>de</strong> <strong>de</strong>vastação<br />
das florestas, da perda da<br />
biodiversida<strong>de</strong>, do <strong>de</strong>sperdício<br />
<strong>de</strong> água, da mudança climática<br />
e dos superantibióticos. Na contramão,<br />
o Brasil, celeiro e se<strong>de</strong><br />
da criação extensiva <strong>de</strong> animais<br />
para todo o planeta, foi citado<br />
como um dos protagonistas<br />
das distorções do exagero e do<br />
<strong>de</strong>sperdício em toda a ca<strong>de</strong>ia,<br />
manejo, distribuição, comercialização<br />
e rebaixamento das<br />
carnes em segunda ou terceira<br />
linhas. O cenário apresentado<br />
pela organização é crítico: anualmente<br />
o Brasil produz mais <strong>de</strong><br />
80 milhões <strong>de</strong> toneladas <strong>de</strong> milho<br />
e outras 86 milhões <strong>de</strong> toneladas<br />
<strong>de</strong> soja para conseguir 26<br />
toneladas <strong>de</strong> carne. O gigantismo<br />
exigido pela plantação dos<br />
insumos que alimentam este<br />
ranking nos coroa absolutos no<br />
pódio do uso <strong>de</strong> pesticidas agrícolas:<br />
somos o “número um” no<br />
ataque às <strong>de</strong>fesas da natureza,<br />
não amamos a terra. Por aqui, a<br />
cobrança pela sustentabilida<strong>de</strong><br />
na produção da carne ainda é<br />
tacanha. Alguns pequenos movimentos<br />
dos gran<strong>de</strong>s frigoríficos<br />
são responsáveis por novos<br />
produtos, mais “saudáveis ou<br />
goumet”, infelizmente custando<br />
mais caro.<br />
Da produção acelerada e da<br />
cruelda<strong>de</strong> aplicada na criação<br />
dos animais é bom nem falar. A<br />
legislação é branda, antiga e se<br />
renova naquilo que interessa à<br />
própria ativida<strong>de</strong>. Por isso é importante<br />
ecoar a mensagem do<br />
Terra Madre e a sua recomendação<br />
“slow meat”. O grito <strong>de</strong><br />
guerra da passeata que tomou<br />
conta das ruas <strong>de</strong> Turim resume<br />
a conta: “eles são muitos, mas<br />
somos milhões”. Então é no<br />
quesito “frequência” que cada<br />
um tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> diminuir e<br />
frear esta máquina <strong>de</strong> moer recursos<br />
naturais.<br />
O churrasquinho do domingo,<br />
a picanha do boteco e o bife<br />
nosso <strong>de</strong> cada dia têm <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />
<strong>de</strong> ser gula para virar <strong>de</strong>gustação,<br />
uma iguaria, <strong>de</strong> vez em<br />
quando. A carne <strong>de</strong>ve voltar a<br />
ser um mito em nossa vida. Temos<br />
<strong>de</strong> aceitar a contrarieda<strong>de</strong><br />
inerente ao consumo da carne<br />
na trajetória e cultura humanas.<br />
Afinal, no princípio, o próprio<br />
homem era a carne e o alimento<br />
<strong>de</strong> muitos animais. E então<br />
a história se inverteu. Ao longo<br />
do tempo, novos significados e<br />
i<strong>de</strong>ologias surgiram em torno<br />
do abate dos animais. Em nome<br />
dos <strong>de</strong>uses, dos po<strong>de</strong>rosos e até<br />
do sofrimento, a carne tornou-<br />
-se oferenda em rituais <strong>de</strong> sacrifício.<br />
Por outro lado, também virou<br />
uma espécie <strong>de</strong> talismã, símbolo<br />
<strong>de</strong> esperança, prosperida<strong>de</strong><br />
e boa sorte em celebrações da<br />
vida. Para alguns é tabu e para<br />
outros, prazer. Simboliza privação<br />
e ostentação, ofensa e orgulho<br />
ao mesmo tempo. Mas no<br />
fim do dia, em nome da carne,<br />
estamos cometendo muitos pecados.<br />
Carne não é ban<strong>de</strong>jinha.<br />
Não po<strong>de</strong> ser banalizada assim.<br />
É um animal que nasceu e morreu<br />
para nos alimentar. Tem <strong>de</strong><br />
ser apreciada com muita parcimônia<br />
e dignida<strong>de</strong>. Guarnecida<br />
<strong>de</strong> valores assim, a carne é sana!<br />
*Marisa Furtado é VP <strong>de</strong> inovação<br />
da Fábrica. Também atua como especialista<br />
em gastronomia, história<br />
e cultura do Madame Aubergine<br />
Cozinha & Cultura.<br />
jornal propmark - <strong>17</strong> <strong>de</strong> <strong>outubro</strong> <strong>de</strong> <strong>2016</strong> 35