27.10.2017 Views

edição de 24 de outubro de 2016

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

STORYTELLER<br />

O mentiroso<br />

Numa gloriosa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> quarta-feira,<br />

me aboletei numa poltrona semileito<br />

da viação Sampaio<br />

LuLa Vieira<br />

Há muito tempo eu tive <strong>de</strong> fazer uma<br />

reunião em Volta Redonda. No dia seguinte<br />

<strong>de</strong>veria ir a Mogi das Cruzes participar<br />

<strong>de</strong> uma convenção das agências <strong>de</strong><br />

publicida<strong>de</strong> que atendiam a Volkswagen.<br />

Descobri que era muito mais fácil pegar um<br />

ônibus executivo que percorre a Dutra nesse<br />

trajeto do que voltar ao Rio, ir <strong>de</strong> Ponte<br />

Aérea para Congonhas e <strong>de</strong>pois seguir para<br />

Mogi. Portanto, numa gloriosa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

quarta-feira, me aboletei numa poltrona semileito<br />

da viação Sampaio que faz o trajeto<br />

Volta Redonda - Mogi das Cruzes, passando<br />

por muitas cida<strong>de</strong>s do Vale do Paraíba. Foi,<br />

confesso, uma <strong>de</strong>liciosa viagem, num ônibus<br />

limpo, cheiroso, com ar-condicionado<br />

e numa velocida<strong>de</strong> civilizada, conduzido<br />

por um motorista/relações públicas extremamente<br />

educado.<br />

Nada a reclamar, nem mesmo do posto<br />

<strong>de</strong> gasolina em que o ônibus parou para o<br />

almoço, que oferece o maior e mais maluco<br />

buffet que jamais eu vi. Na base dos cinco<br />

cruzeiros cada 100 gramas, tinha <strong>de</strong> sushi<br />

a rabada, dobradinha e quibe, suflê <strong>de</strong> palmito<br />

e mocotó. Uma suruba gastronômica<br />

incrível, mas até que comível, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

se mantenha uma certa coerência. O feijão,<br />

por exemplo, era uma quase obra-prima,<br />

embora eu não tivesse encontrado coragem<br />

para <strong>de</strong>gustar as ostras, a maionese e o salpicão<br />

<strong>de</strong> galinha. Para beber, tudo que se<br />

pu<strong>de</strong>sse imaginar. Cerveja, vinho, todos os<br />

refrigerantes e sucos, leite, chás e até água.<br />

Caminhoneiros, famílias e solitários passageiros<br />

<strong>de</strong> ônibus disputavam alegremente<br />

um informal concurso <strong>de</strong> bizarrice alimentar,<br />

misturando macarrão, feijão, lasanha e<br />

rissoles. E uma fatia <strong>de</strong> tomate para dar cor.<br />

O banheiro, limpíssimo, ostentava o<br />

classudo e inevitável aviso <strong>de</strong> todos os banheiros<br />

brasileiros: “Favor não urinar no<br />

chão”. Um velhinho miúdo e triste ficava<br />

<strong>de</strong> plantão, com uma vassoura por perto,<br />

pois alegria <strong>de</strong> brasileiro é mijar fora do<br />

mictório. Voltemos ao coletivo, como diria<br />

Adoniran Barbosa.<br />

Depois <strong>de</strong> quatro horas <strong>de</strong> cochilos e meditações,<br />

<strong>de</strong>sembarquei na rodoviária <strong>de</strong><br />

Mogi das Cruzes, em busca <strong>de</strong> um táxi que<br />

me levasse ao Blue Tree Resort, um super-<br />

-hotel nababesco, <strong>de</strong>stinado aos amantes<br />

do golfe e convenções da mais alta classe.<br />

Hoje estou meio colunista social que recebe<br />

jabá, elogiando tudo, mas posso garantir<br />

que não estou ganhando nada nem do<br />

posto <strong>de</strong> gasolina, nem da Viação Sampaio<br />

e muito menos do Blue Tree.<br />

É bem verda<strong>de</strong> que por uma grana sou<br />

capaz <strong>de</strong> dizer que gosto mesmo é da Cometa,<br />

adoro a comida do Bob’s e o único hotel<br />

que eu frequento com prazer é o Íbis. Tudo<br />

uma questão <strong>de</strong> acertar o pixuleco, como é<br />

moda hoje em dia. Voltemos à rodoviária.<br />

De lá peguei um táxi e, com voz autoritária,<br />

man<strong>de</strong>i seguir para o Blue Tree. O motorista<br />

voltou-se para mim, olhou meu jeans velhinho<br />

e afirmou: “Vai ficar uma nota, pois<br />

é <strong>de</strong>pois do perímetro urbano. Tudo bem?”<br />

Não entendi a dúvida, mas afirmei que estava<br />

tudo bem. E fomos indo.<br />

Minutos <strong>de</strong>pois, o motorista me perguntou,<br />

cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos: “O senhor joga golfe?”<br />

Eu disse que não. Ele <strong>de</strong>u um tempinho e<br />

voltou: “O senhor conhece o Blue Tree?”.<br />

Novamente eu neguei. Ele começou a ficar<br />

preocupado. “Quem lhe recomendou esse<br />

hotel? O senhor sabe quanto custa?” Eu disse<br />

que quem marcou o hotel foi a Volkswagen,<br />

e nessa hora quase <strong>de</strong>u pra ouvir seu<br />

suspiro <strong>de</strong> alívio. Ele não estava correndo<br />

riscos. Mas continuou curioso, pois me perguntou<br />

o que eu fazia na Volks.<br />

Fui obrigado a dizer que trabalhava numa<br />

agência <strong>de</strong> propaganda que atendia a<br />

associação dos Reven<strong>de</strong>dores Volkswagen<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Ele tentou enten<strong>de</strong>r:<br />

“O senhor é publicitário, trabalha para a<br />

Volkswagen e veio para uma convenção<br />

no Blue Tree, certo?” Eu disse que sim. Ele<br />

aproveitou um sinal vermelho, olhou <strong>de</strong>moradamente<br />

para mim e fez a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira<br />

pergunta, com ar <strong>de</strong> profundo sarcasmo:<br />

“E veio <strong>de</strong> ônibus?”.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor da<br />

Mesa Consultoria <strong>de</strong> Comunicação,<br />

radialista, escritor, editor e professor<br />

lulavieira@grupomesa.com.br<br />

40 <strong>24</strong> <strong>de</strong> <strong>outubro</strong> <strong>de</strong> <strong>2016</strong> - jornal propmark

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!