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STORYTELLER<br />
O mentiroso<br />
Numa gloriosa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> quarta-feira,<br />
me aboletei numa poltrona semileito<br />
da viação Sampaio<br />
LuLa Vieira<br />
Há muito tempo eu tive <strong>de</strong> fazer uma<br />
reunião em Volta Redonda. No dia seguinte<br />
<strong>de</strong>veria ir a Mogi das Cruzes participar<br />
<strong>de</strong> uma convenção das agências <strong>de</strong><br />
publicida<strong>de</strong> que atendiam a Volkswagen.<br />
Descobri que era muito mais fácil pegar um<br />
ônibus executivo que percorre a Dutra nesse<br />
trajeto do que voltar ao Rio, ir <strong>de</strong> Ponte<br />
Aérea para Congonhas e <strong>de</strong>pois seguir para<br />
Mogi. Portanto, numa gloriosa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
quarta-feira, me aboletei numa poltrona semileito<br />
da viação Sampaio que faz o trajeto<br />
Volta Redonda - Mogi das Cruzes, passando<br />
por muitas cida<strong>de</strong>s do Vale do Paraíba. Foi,<br />
confesso, uma <strong>de</strong>liciosa viagem, num ônibus<br />
limpo, cheiroso, com ar-condicionado<br />
e numa velocida<strong>de</strong> civilizada, conduzido<br />
por um motorista/relações públicas extremamente<br />
educado.<br />
Nada a reclamar, nem mesmo do posto<br />
<strong>de</strong> gasolina em que o ônibus parou para o<br />
almoço, que oferece o maior e mais maluco<br />
buffet que jamais eu vi. Na base dos cinco<br />
cruzeiros cada 100 gramas, tinha <strong>de</strong> sushi<br />
a rabada, dobradinha e quibe, suflê <strong>de</strong> palmito<br />
e mocotó. Uma suruba gastronômica<br />
incrível, mas até que comível, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
se mantenha uma certa coerência. O feijão,<br />
por exemplo, era uma quase obra-prima,<br />
embora eu não tivesse encontrado coragem<br />
para <strong>de</strong>gustar as ostras, a maionese e o salpicão<br />
<strong>de</strong> galinha. Para beber, tudo que se<br />
pu<strong>de</strong>sse imaginar. Cerveja, vinho, todos os<br />
refrigerantes e sucos, leite, chás e até água.<br />
Caminhoneiros, famílias e solitários passageiros<br />
<strong>de</strong> ônibus disputavam alegremente<br />
um informal concurso <strong>de</strong> bizarrice alimentar,<br />
misturando macarrão, feijão, lasanha e<br />
rissoles. E uma fatia <strong>de</strong> tomate para dar cor.<br />
O banheiro, limpíssimo, ostentava o<br />
classudo e inevitável aviso <strong>de</strong> todos os banheiros<br />
brasileiros: “Favor não urinar no<br />
chão”. Um velhinho miúdo e triste ficava<br />
<strong>de</strong> plantão, com uma vassoura por perto,<br />
pois alegria <strong>de</strong> brasileiro é mijar fora do<br />
mictório. Voltemos ao coletivo, como diria<br />
Adoniran Barbosa.<br />
Depois <strong>de</strong> quatro horas <strong>de</strong> cochilos e meditações,<br />
<strong>de</strong>sembarquei na rodoviária <strong>de</strong><br />
Mogi das Cruzes, em busca <strong>de</strong> um táxi que<br />
me levasse ao Blue Tree Resort, um super-<br />
-hotel nababesco, <strong>de</strong>stinado aos amantes<br />
do golfe e convenções da mais alta classe.<br />
Hoje estou meio colunista social que recebe<br />
jabá, elogiando tudo, mas posso garantir<br />
que não estou ganhando nada nem do<br />
posto <strong>de</strong> gasolina, nem da Viação Sampaio<br />
e muito menos do Blue Tree.<br />
É bem verda<strong>de</strong> que por uma grana sou<br />
capaz <strong>de</strong> dizer que gosto mesmo é da Cometa,<br />
adoro a comida do Bob’s e o único hotel<br />
que eu frequento com prazer é o Íbis. Tudo<br />
uma questão <strong>de</strong> acertar o pixuleco, como é<br />
moda hoje em dia. Voltemos à rodoviária.<br />
De lá peguei um táxi e, com voz autoritária,<br />
man<strong>de</strong>i seguir para o Blue Tree. O motorista<br />
voltou-se para mim, olhou meu jeans velhinho<br />
e afirmou: “Vai ficar uma nota, pois<br />
é <strong>de</strong>pois do perímetro urbano. Tudo bem?”<br />
Não entendi a dúvida, mas afirmei que estava<br />
tudo bem. E fomos indo.<br />
Minutos <strong>de</strong>pois, o motorista me perguntou,<br />
cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos: “O senhor joga golfe?”<br />
Eu disse que não. Ele <strong>de</strong>u um tempinho e<br />
voltou: “O senhor conhece o Blue Tree?”.<br />
Novamente eu neguei. Ele começou a ficar<br />
preocupado. “Quem lhe recomendou esse<br />
hotel? O senhor sabe quanto custa?” Eu disse<br />
que quem marcou o hotel foi a Volkswagen,<br />
e nessa hora quase <strong>de</strong>u pra ouvir seu<br />
suspiro <strong>de</strong> alívio. Ele não estava correndo<br />
riscos. Mas continuou curioso, pois me perguntou<br />
o que eu fazia na Volks.<br />
Fui obrigado a dizer que trabalhava numa<br />
agência <strong>de</strong> propaganda que atendia a<br />
associação dos Reven<strong>de</strong>dores Volkswagen<br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Ele tentou enten<strong>de</strong>r:<br />
“O senhor é publicitário, trabalha para a<br />
Volkswagen e veio para uma convenção<br />
no Blue Tree, certo?” Eu disse que sim. Ele<br />
aproveitou um sinal vermelho, olhou <strong>de</strong>moradamente<br />
para mim e fez a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira<br />
pergunta, com ar <strong>de</strong> profundo sarcasmo:<br />
“E veio <strong>de</strong> ônibus?”.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor da<br />
Mesa Consultoria <strong>de</strong> Comunicação,<br />
radialista, escritor, editor e professor<br />
lulavieira@grupomesa.com.br<br />
40 <strong>24</strong> <strong>de</strong> <strong>outubro</strong> <strong>de</strong> <strong>2016</strong> - jornal propmark