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edição de 13 de maio de 2019

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STORYTELLER<br />

liveostockimages/iStock<br />

Ressaca<br />

Ressaca é um dos assuntos mais<br />

presentes na internet. O Google<br />

lista 25.600 sites sobre a matéria<br />

LuLa Vieira<br />

Antes <strong>de</strong> mais nada, me permita dar a<br />

minha receita contra a ressaca, cuja<br />

eficiência é igual a qualquer outra: nenhuma.<br />

Mas lutar contra a sensação <strong>de</strong> gosto <strong>de</strong><br />

corrimão <strong>de</strong> INSS na boca é parte da cura.<br />

Pelo menos moral. Ressacados, sim, entregues<br />

nunca! O que eu faço? Pego um suco<br />

<strong>de</strong> tomate <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong>, coloco num<br />

copo com muito gelo, acrescento vodka,<br />

suco <strong>de</strong> limão, pimenta e sal e bebo. Dirá<br />

você: mas esta é a receita <strong>de</strong> Blood Mary!<br />

Minha resposta é simples. Parece ser, mas<br />

não é. Trata-se <strong>de</strong> um remédio e assim <strong>de</strong>ve<br />

ser encarado. Logo, a receita que lhe <strong>de</strong>i<br />

não é <strong>de</strong> um drinque, mas um produto com<br />

finalida<strong>de</strong> medicinal.<br />

Depois disso tomo 45 gotas <strong>de</strong> Novalgina,<br />

30 gotas <strong>de</strong> Elixir Paregórico e um Imosec<br />

que, pelo que sei, está proibido no Brasil,<br />

mas quando viajo trago uma boa quantida<strong>de</strong><br />

exatamente para essas emergências.<br />

Essa formulação contempla dor <strong>de</strong> cabeça,<br />

cólicas e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir ao banheiro. O suco<br />

<strong>de</strong> tomate e o limão minimizam a sensação<br />

<strong>de</strong> se<strong>de</strong>. E a vodka, bem a vodka, tenta <strong>de</strong>volver<br />

um resto <strong>de</strong> amor próprio que a imagem<br />

no espelho <strong>de</strong>strói. Proíbo os amigos e<br />

a mulher <strong>de</strong> me contar o vexame que <strong>de</strong>i e<br />

fico em silêncio lendo um livro <strong>de</strong> <strong>de</strong>tetive<br />

ou espionagem, se possível com um herói<br />

beberrão. Não resolve nada, mas dá a ligeira<br />

impressão que alguma coisa foi feita em<br />

benefício do amor próprio.<br />

Uma vez um cliente me obrigou a viajar<br />

para São Paulo em plena quarta-feira <strong>de</strong><br />

cinzas. Foi daí que eu entendi o verda<strong>de</strong>iro<br />

significado da data: o gosto <strong>de</strong> ponta <strong>de</strong> cigarro<br />

na boca. O Santos Dumont apinhado,<br />

a multidão enlouquecida e a dor <strong>de</strong> cabeça<br />

me fizeram pensar seriamente em parar<br />

<strong>de</strong> beber. Para falar a verda<strong>de</strong>, naquela<br />

hora pensei seriamente em parar <strong>de</strong> viver.<br />

No avião li, por coincidência, uma crônica<br />

do Mário Prata exatamente sobre ressaca.<br />

E <strong>de</strong>scobri que ressaca é um dos assuntos<br />

mais presentes na internet. O Google lista<br />

25.600 sites sobre a matéria. Como Mario<br />

Prata reproduz Luiz Fernando Veríssimo<br />

falando <strong>de</strong> ressaca, faço o mesmo, reproduzindo<br />

a reprodução.<br />

Abrem-se aspas. Hoje existem pílulas<br />

milagrosas, mas sou do tempo das gran<strong>de</strong>s<br />

ressacas. As bebe<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> antigamente<br />

eram mais dignas, porque você bebia<br />

sabendo que no dia seguinte estaria no inferno.<br />

Além <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, era preciso coragem.<br />

As novas gerações não conhecem ressaca,<br />

o que talvez explique a falência dos velhos<br />

valores. A ressaca era a prova <strong>de</strong> que a retribuição<br />

divina e nenhum prazer ficará<br />

sem castigo. Cada porre era um <strong>de</strong>safio ao<br />

céu e às suas feras. E elas vinham: náusea,<br />

azia, dor <strong>de</strong> cabeça, dúvidas existenciais,<br />

golfadas. Hoje as bebe<strong>de</strong>iras não têm a<br />

mesma gran<strong>de</strong>za. Pois bem, leitor, fechemos<br />

as aspas.<br />

Digo eu agora: a ressaca é o marketing do<br />

corpo. Sem ela não teríamos o aviso que a<br />

bebida é, antes <strong>de</strong> mais nada, um veneno.<br />

Sem ressaca transformaríamos nosso fígado<br />

num patê, nosso estômago numa chaga<br />

e nosso cérebro numa compota sem um<br />

único lembrete. É bem verda<strong>de</strong> que, mesmo<br />

assim, continuamos a beber. Mas pelo<br />

menos nosso corpo po<strong>de</strong> nos dizer: “eu<br />

bem que avisei”. Outro dia minha mulher<br />

perguntou por que eu estava bebendo. Botei<br />

a culpa no Bolsonaro e sua troupe.<br />

Ela tinha certeza <strong>de</strong> que iria ouvir a<br />

resposta <strong>de</strong> sempre. A ida<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>rrota do<br />

Santos, a finitu<strong>de</strong> da vida, a falta <strong>de</strong> amor<br />

entre os homens. As <strong>de</strong>sculpas ou as razões<br />

<strong>de</strong> sempre. Mas expliquei que estava<br />

bebendo por causa dos tuíters dos filhos<br />

do presi<strong>de</strong>nte, por causa do ministro da<br />

Educação, da Damares, do Olavo <strong>de</strong> Carvalho.<br />

Eu estava bebendo por <strong>de</strong>scobrir<br />

que o governo acha um horror o ensino<br />

<strong>de</strong> coisas inúteis como filosofia. Eu estava<br />

bebendo para esquecer o enorme bando<br />

<strong>de</strong> rancorosos que tenho <strong>de</strong>scoberto nas<br />

re<strong>de</strong>s sociais, apoiando o ódio. Eu estava<br />

bebendo para não pensar na imagem<br />

<strong>de</strong> meu governador segurando uma arma<br />

para, a bordo <strong>de</strong> um helicóptero, atirar em<br />

gente que a muitos metros <strong>de</strong> altura seriam<br />

i<strong>de</strong>ntificados como criminosos. Minha<br />

mulher ficou me olhando. Cheguei a<br />

ler em seu cérebro a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que bebum<br />

inventa qualquer <strong>de</strong>sculpa. Mas algo em<br />

seus olhos me <strong>de</strong>u a certeza que ela achou<br />

que – <strong>de</strong>sta vez – eu tinha razão.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

28 <strong>13</strong> <strong>de</strong> <strong>maio</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark

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