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STORYTELLER<br />
liveostockimages/iStock<br />
Ressaca<br />
Ressaca é um dos assuntos mais<br />
presentes na internet. O Google<br />
lista 25.600 sites sobre a matéria<br />
LuLa Vieira<br />
Antes <strong>de</strong> mais nada, me permita dar a<br />
minha receita contra a ressaca, cuja<br />
eficiência é igual a qualquer outra: nenhuma.<br />
Mas lutar contra a sensação <strong>de</strong> gosto <strong>de</strong><br />
corrimão <strong>de</strong> INSS na boca é parte da cura.<br />
Pelo menos moral. Ressacados, sim, entregues<br />
nunca! O que eu faço? Pego um suco<br />
<strong>de</strong> tomate <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong>, coloco num<br />
copo com muito gelo, acrescento vodka,<br />
suco <strong>de</strong> limão, pimenta e sal e bebo. Dirá<br />
você: mas esta é a receita <strong>de</strong> Blood Mary!<br />
Minha resposta é simples. Parece ser, mas<br />
não é. Trata-se <strong>de</strong> um remédio e assim <strong>de</strong>ve<br />
ser encarado. Logo, a receita que lhe <strong>de</strong>i<br />
não é <strong>de</strong> um drinque, mas um produto com<br />
finalida<strong>de</strong> medicinal.<br />
Depois disso tomo 45 gotas <strong>de</strong> Novalgina,<br />
30 gotas <strong>de</strong> Elixir Paregórico e um Imosec<br />
que, pelo que sei, está proibido no Brasil,<br />
mas quando viajo trago uma boa quantida<strong>de</strong><br />
exatamente para essas emergências.<br />
Essa formulação contempla dor <strong>de</strong> cabeça,<br />
cólicas e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir ao banheiro. O suco<br />
<strong>de</strong> tomate e o limão minimizam a sensação<br />
<strong>de</strong> se<strong>de</strong>. E a vodka, bem a vodka, tenta <strong>de</strong>volver<br />
um resto <strong>de</strong> amor próprio que a imagem<br />
no espelho <strong>de</strong>strói. Proíbo os amigos e<br />
a mulher <strong>de</strong> me contar o vexame que <strong>de</strong>i e<br />
fico em silêncio lendo um livro <strong>de</strong> <strong>de</strong>tetive<br />
ou espionagem, se possível com um herói<br />
beberrão. Não resolve nada, mas dá a ligeira<br />
impressão que alguma coisa foi feita em<br />
benefício do amor próprio.<br />
Uma vez um cliente me obrigou a viajar<br />
para São Paulo em plena quarta-feira <strong>de</strong><br />
cinzas. Foi daí que eu entendi o verda<strong>de</strong>iro<br />
significado da data: o gosto <strong>de</strong> ponta <strong>de</strong> cigarro<br />
na boca. O Santos Dumont apinhado,<br />
a multidão enlouquecida e a dor <strong>de</strong> cabeça<br />
me fizeram pensar seriamente em parar<br />
<strong>de</strong> beber. Para falar a verda<strong>de</strong>, naquela<br />
hora pensei seriamente em parar <strong>de</strong> viver.<br />
No avião li, por coincidência, uma crônica<br />
do Mário Prata exatamente sobre ressaca.<br />
E <strong>de</strong>scobri que ressaca é um dos assuntos<br />
mais presentes na internet. O Google lista<br />
25.600 sites sobre a matéria. Como Mario<br />
Prata reproduz Luiz Fernando Veríssimo<br />
falando <strong>de</strong> ressaca, faço o mesmo, reproduzindo<br />
a reprodução.<br />
Abrem-se aspas. Hoje existem pílulas<br />
milagrosas, mas sou do tempo das gran<strong>de</strong>s<br />
ressacas. As bebe<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> antigamente<br />
eram mais dignas, porque você bebia<br />
sabendo que no dia seguinte estaria no inferno.<br />
Além <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, era preciso coragem.<br />
As novas gerações não conhecem ressaca,<br />
o que talvez explique a falência dos velhos<br />
valores. A ressaca era a prova <strong>de</strong> que a retribuição<br />
divina e nenhum prazer ficará<br />
sem castigo. Cada porre era um <strong>de</strong>safio ao<br />
céu e às suas feras. E elas vinham: náusea,<br />
azia, dor <strong>de</strong> cabeça, dúvidas existenciais,<br />
golfadas. Hoje as bebe<strong>de</strong>iras não têm a<br />
mesma gran<strong>de</strong>za. Pois bem, leitor, fechemos<br />
as aspas.<br />
Digo eu agora: a ressaca é o marketing do<br />
corpo. Sem ela não teríamos o aviso que a<br />
bebida é, antes <strong>de</strong> mais nada, um veneno.<br />
Sem ressaca transformaríamos nosso fígado<br />
num patê, nosso estômago numa chaga<br />
e nosso cérebro numa compota sem um<br />
único lembrete. É bem verda<strong>de</strong> que, mesmo<br />
assim, continuamos a beber. Mas pelo<br />
menos nosso corpo po<strong>de</strong> nos dizer: “eu<br />
bem que avisei”. Outro dia minha mulher<br />
perguntou por que eu estava bebendo. Botei<br />
a culpa no Bolsonaro e sua troupe.<br />
Ela tinha certeza <strong>de</strong> que iria ouvir a<br />
resposta <strong>de</strong> sempre. A ida<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>rrota do<br />
Santos, a finitu<strong>de</strong> da vida, a falta <strong>de</strong> amor<br />
entre os homens. As <strong>de</strong>sculpas ou as razões<br />
<strong>de</strong> sempre. Mas expliquei que estava<br />
bebendo por causa dos tuíters dos filhos<br />
do presi<strong>de</strong>nte, por causa do ministro da<br />
Educação, da Damares, do Olavo <strong>de</strong> Carvalho.<br />
Eu estava bebendo por <strong>de</strong>scobrir<br />
que o governo acha um horror o ensino<br />
<strong>de</strong> coisas inúteis como filosofia. Eu estava<br />
bebendo para esquecer o enorme bando<br />
<strong>de</strong> rancorosos que tenho <strong>de</strong>scoberto nas<br />
re<strong>de</strong>s sociais, apoiando o ódio. Eu estava<br />
bebendo para não pensar na imagem<br />
<strong>de</strong> meu governador segurando uma arma<br />
para, a bordo <strong>de</strong> um helicóptero, atirar em<br />
gente que a muitos metros <strong>de</strong> altura seriam<br />
i<strong>de</strong>ntificados como criminosos. Minha<br />
mulher ficou me olhando. Cheguei a<br />
ler em seu cérebro a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que bebum<br />
inventa qualquer <strong>de</strong>sculpa. Mas algo em<br />
seus olhos me <strong>de</strong>u a certeza que ela achou<br />
que – <strong>de</strong>sta vez – eu tinha razão.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
28 <strong>13</strong> <strong>de</strong> <strong>maio</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark