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edição de 17 de janeiro de 2022

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inspiração<br />

Eu vivi um filme<br />

Fotos: Arquivo Pessoal<br />

“Essa experiência me ajudou muito a enten<strong>de</strong>r por que eu fotografo e<br />

filmo: é como se fosse a minha maneira <strong>de</strong> tornar imortal essas histórias”<br />

LARISSA ZAIDAN<br />

Especial para o PROPMARK<br />

Em setembro <strong>de</strong> 2019, antes <strong>de</strong> ir pra Rússia<br />

para realizar um projeto autoral <strong>de</strong><br />

fotografia e ví<strong>de</strong>o, eu fui pra Berlim passar<br />

10 dias lá só pra ver um amigo querido.<br />

A bem da verda<strong>de</strong> é que eu tava achando<br />

Berlim meio chata, eu sei que é uma cida<strong>de</strong><br />

legal, mas ela não tinha muito da adrenalina<br />

que me motiva numa cida<strong>de</strong> nova.<br />

Pois um dia eu fui pro parque, passei o<br />

dia lá lendo O Nariz, do Gogol, e escrevendo<br />

no meu ca<strong>de</strong>rno. E foi aí que tudo mudou.<br />

Era já fim do dia quando eu vi o Mike, um<br />

homem preto alto, muito alto, supermagro,<br />

<strong>de</strong> saia, com óculos escuros redondos <strong>de</strong><br />

noite e um saxofone na mão. Chutei que ele<br />

estava na casa dos 60 anos. E Mike estava<br />

bêbado, gritava alto em inglês coisas que eu<br />

não entendia.<br />

E tinha um amigo <strong>de</strong>le <strong>de</strong> uns 20 e poucos<br />

anos que usava um chapéu engraçado.<br />

Esse menino cantava enquanto Mike assoprava<br />

notas no embalo <strong>de</strong> um jazz em seu<br />

instrumento. Era lindo, ele estava tocando<br />

como se fosse o último show da vida <strong>de</strong>le.<br />

Lembro-me que achei engraçado que ele<br />

tinha uma ca<strong>de</strong>irinha portátil, tipo aquelas<br />

<strong>de</strong> diretor <strong>de</strong> cinema, e pra on<strong>de</strong> ele ia<br />

a ca<strong>de</strong>irinha ia junto em sua outra mão. Ele<br />

parecia cansado também.<br />

Algumas poucas pessoas passavam e<br />

jogavam trocados numa caixinha que ele<br />

havia colocado perto <strong>de</strong> si. Ele era irônico,<br />

superousado, falava pra quem estivesse por<br />

perto coisas que talvez eu jamais teria coragem<br />

<strong>de</strong> falar, mas que eram totalmente<br />

verda<strong>de</strong>.<br />

Eu havia <strong>de</strong>cidido falar com ele, pedir<br />

pra fotografá-lo, talvez quem sabe até fazer<br />

um filme <strong>de</strong>le! E fui, com vergonha, quase<br />

arrependida <strong>de</strong> ter tido a i<strong>de</strong>ia.<br />

O Mike me disse com a maior naturalida<strong>de</strong><br />

que eu po<strong>de</strong>ria ficar com ele, acompanhá-lo.<br />

Tirou <strong>de</strong> uma sacola sua caixa <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira<br />

cheia <strong>de</strong> moedas e algumas notas <strong>de</strong><br />

dinheiro que ele havia recebido durante o<br />

dia. Disse que estava com fome, perguntou<br />

se ele me <strong>de</strong>sse dinheiro se eu po<strong>de</strong>ria ir até<br />

um restaurante <strong>de</strong> lamen na esquina comprar<br />

seu prato favorito.<br />

“É que eu já arrumei briga lá, não posso<br />

voltar senão o gerente não me ven<strong>de</strong> nada”,<br />

disse ele. Passamos uns três dias nos encontrando,<br />

eu com minha câmera, ele com<br />

seu saxofone.<br />

Um <strong>de</strong>sses dias ele me apresentou a um<br />

casal também americano que cantava junto<br />

com ele no metrô.<br />

Passamos uma tar<strong>de</strong> toda em vagões<br />

pelo subsolo <strong>de</strong> Berlim enquanto eles tocavam<br />

em troca <strong>de</strong> uns euros.<br />

Eu filmava tudo, e vivia aquilo também<br />

como seu fosse a minha última imagem a<br />

ser captada.<br />

De tempos em tempos o Mike me dava<br />

um dinheiro e pedia pra eu ir na banca comprar<br />

cigarros e uma garrafinha <strong>de</strong> vodka.<br />

Ele dizia que já havia tocado com o Prince<br />

e mais uma porrada <strong>de</strong> gente muito famosa<br />

da música. Eu filmei ele tocando, ele<br />

falando, fazendo charme pra câmera. No<br />

último dia que nos encontramos ele parecia<br />

ainda mais cansado, <strong>de</strong> cinco em cinco minutos<br />

abria sua ca<strong>de</strong>irinha para <strong>de</strong>scansar.<br />

Ficou irritado que todos no metrô estavam<br />

imersos no celular e não queriam cantar a<br />

música que ele tocava.<br />

Descemos então em uma estação qualquer,<br />

ele se <strong>de</strong>spediu <strong>de</strong> mim dizendo que<br />

precisava ir, queria comer e voltar logo pra<br />

casa <strong>de</strong>le.<br />

Foi muito rápida essa <strong>de</strong>spedida, mas ele<br />

mudou completamente a minha viagem a<br />

Berlim.<br />

Aqueles poucos dias viraram um check<br />

point <strong>de</strong> memória na minha vida. Eu consigo<br />

revisitar essa lembrança com muita intensida<strong>de</strong>,<br />

lembro das roupas, dos cheiros,<br />

dos sons. Eu vivi um filme, e eu fiz o meu<br />

filme.<br />

Essa experiência me ajudou muito a<br />

enten<strong>de</strong>r por que eu fotografo e filmo: é<br />

como se fosse a minha maneira <strong>de</strong> tornar<br />

imortal essas histórias que vivo e, consequentemente,<br />

permanecer viva mesmo<br />

quando eu não estiver mais aqui ou não<br />

pu<strong>de</strong>r mais me lembrar com tantos <strong>de</strong>talhes<br />

<strong>de</strong>ssas narrativas.<br />

Larissa Zaidan é diretora <strong>de</strong> cena da Stink Films<br />

jornal propmark - <strong>17</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2022</strong> 11

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