13.03.2015 Views

Sacha Baron Cohen - Fonoteca Municipal de Lisboa

Sacha Baron Cohen - Fonoteca Municipal de Lisboa

Sacha Baron Cohen - Fonoteca Municipal de Lisboa

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Música<br />

Meio ano <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “Nº1: Sessão <strong>de</strong><br />

Cezimbra”, eis “Muda Que Muda”, o<br />

excelente segundo disco <strong>de</strong> João Coração.<br />

O mais idiossincrático bala<strong>de</strong>iro<br />

da nação transformou-se no rei<br />

das canções para beira <strong>de</strong> piscina <strong>de</strong><br />

“resort” <strong>de</strong> férias e a mudança é <strong>de</strong><br />

monta: on<strong>de</strong> antes havia canções <strong>de</strong><br />

Inverno, melancólicas e cheias <strong>de</strong><br />

angústia e charme, agora há canções<br />

<strong>de</strong> Verão, melancólicas e cheias <strong>de</strong><br />

alegria angustiada. Na altura chamámos-lhe<br />

“vagabundo romântico em<br />

pantufas”; agora ele parece um sedutor<br />

existencialista em chinelas. O<br />

Gainsbourg <strong>de</strong> Sesimbra. O Hank<br />

Williams dos letrados. O futuro vencedor<br />

do Festival da Canção.<br />

Mas mesmo entre os amigos <strong>de</strong><br />

Coração há quem o <strong>de</strong>fenda ferreamente<br />

e quem não o aprecie.<br />

“Não chego a perceber se alguns<br />

amigos não gostam das minhas canções<br />

ou implicam comigo. Como são<br />

pouco claros não faço perguntas”,<br />

diz, antes <strong>de</strong> acrescentar que tudo<br />

po<strong>de</strong> ter mudado, porque “agora até<br />

o Manel [Fúria, vocalista e lí<strong>de</strong>r d’Os<br />

Golpes] gosta <strong>de</strong>ste disco”.<br />

A ambiguida<strong>de</strong> da recepção a Coração<br />

começou com uma canção que<br />

está em “Muda Que Muda”, mas que<br />

tinha saltado cá para fora <strong>de</strong> forma<br />

oficiosa aquando do primeiro disco:<br />

“Sofia”.<br />

A 21 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 2008, dia em<br />

que o Ípsilon fez capa com Coração,<br />

Tiago Guillul, Manuel Fúria (d’Os Golpes)<br />

e Samuel Úria - uma capa sobre<br />

a chegada <strong>de</strong> novos cantautores em<br />

português - João gravou um ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong><br />

uma canção que acabara <strong>de</strong> compor.<br />

Tinha acabado <strong>de</strong> lançar “Nº1: Sessão<br />

<strong>de</strong> Cezimbra” e talvez fosse sensato<br />

lançar um ví<strong>de</strong>o bem preparado <strong>de</strong><br />

uma canção terminada e disponível.<br />

Mas não. No ví<strong>de</strong>o Coração canta<br />

“Sofia” ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> raparigas com ar<br />

blasé, que ora lêem ora olham o infinito,<br />

indiferentes à performance do<br />

bardo, que canta <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>safinada<br />

uma canção que nitidamente ainda<br />

precisa <strong>de</strong> trabalho. Ao contrário<br />

do que acontece com os ví<strong>de</strong>os oficiais,<br />

o som não está pré-gravado (ele<br />

nem tinha gravado a canção), é som<br />

directo.<br />

O ví<strong>de</strong>o foi a <strong>de</strong>sculpa que os <strong>de</strong>tractores<br />

precisavam para o qualificar<br />

<strong>de</strong> frau<strong>de</strong>. Quando lhe perguntamos<br />

agora se aquele ví<strong>de</strong>o era uma piada,<br />

mantém-se semi-críptico: “Alguém<br />

pôs um comentário no ví<strong>de</strong>o da ‘Sofia’:<br />

‘Mas isto é a sério ou é a brincar?’<br />

E o Pedro Fernan<strong>de</strong>s Duarte, que fez<br />

o ví<strong>de</strong>o, respon<strong>de</strong>u: ‘Isso terás <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />

o coração respon<strong>de</strong>r’”.<br />

Isto é como o humor <strong>de</strong> João Coração<br />

funciona: nunca há um laçarote<br />

no final que nos diga “Hey, isto<br />

era uma piada” que nos permita ficar<br />

<strong>de</strong>scansados e seguir com a nossa<br />

vida. Como todo o bom tipo que não<br />

joga <strong>de</strong> acordo com as regras convencionais,<br />

atira: “Aquilo era o ví<strong>de</strong>o<br />

para a última canção que tinha feito.<br />

Só isso”.<br />

É nítido que não lhe interessa proteger<br />

a sua imagem, ou <strong>de</strong>ixar sair<br />

apenas o que está perfeito. Ele próprio<br />

diz que mesmo agora, com “Sofia”<br />

editada oficialmente em “Muda<br />

Que Muda”, a canção “ainda não atingiu,<br />

em nenhuma das duas versões,<br />

o que po<strong>de</strong>ria atingir”. E no entanto<br />

não se importa que haja aquele ví<strong>de</strong>o.<br />

“Só o tempo falará sobre o valor da<br />

coisa e nunca haverá uma versão final<br />

<strong>de</strong> uma música”.<br />

Tem uma visão curiosa do negócio<br />

da música, que oscila entre o racional<br />

e o ingénuo: “Quando dou uma<br />

canção às pessoas é só a versão que<br />

gravei naquele dia. Não quer dizer<br />

que não tenha feito melhor sozinho<br />

em casa, ou que não vá fazer melhor<br />

vinte anos <strong>de</strong>pois ao vivo. É um processo<br />

que nunca acaba. Não vou perguntar-me<br />

muitas vezes se já é a versão<br />

final ou não. Senão nunca acabava<br />

uma canção”.<br />

Não é só no ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> “Sofia” que o<br />

estranho humor <strong>de</strong> Coração <strong>de</strong>ixa as<br />

pessoas sem saber o que pensar. A capa<br />

<strong>de</strong> “Muda Que Muda” também tem<br />

“Não chego<br />

a perceber se<br />

alguns amigos<br />

não gostam<br />

das minhas canções<br />

ou implicam comigo.<br />

Como são pouco<br />

claros não faço<br />

perguntas”<br />

<strong>de</strong>ixado muitos sem saber o que pensar:<br />

Coração surge <strong>de</strong> camisa aberta,<br />

olhar <strong>de</strong> carneiro mal morto, e aquilo<br />

está próximo das capas <strong>de</strong> Michael<br />

Carreira ou <strong>de</strong> Julio Iglesias.<br />

“As pessoas ficam sem jeito com<br />

aquela capa. Não sabem o que hão-<strong>de</strong><br />

fazer. São pessoas que não estão confortáveis<br />

consigo próprias e sentem-se<br />

ameaçadas com quem está. A liberda<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong> parecer uma ameaça mas<br />

não é. É só um tipo a fazer uma coisa<br />

que lhe apeteceu fazer”.<br />

Isto é o lado filosófico <strong>de</strong> Coração,<br />

rapaz <strong>de</strong> quase trinta anos que faz<br />

muitas perguntas a si mesmo e é <strong>de</strong><br />

uma honestida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sarmante. “Eu<br />

também nunca sei quando é que<br />

estou a gozar e quando é que não<br />

estou”. Ele simplesmente experimenta.<br />

Aristocrata falido<br />

Encontrámo-nos em Sesimbra, on<strong>de</strong><br />

a esposa <strong>de</strong> Coração tem um pequeno<br />

e simpático apartamento, para conversar<br />

acerca <strong>de</strong> “Muda Que Muda”.<br />

A expansiva barba que ostentava da<br />

primeira vez que o víramos, há meses,<br />

<strong>de</strong>sapareceu para dar lugar ao cinzento<br />

<strong>de</strong> pelos <strong>de</strong> três dias. Vem <strong>de</strong> calções,<br />

t-shirt e sandálias e mantém<br />

aquele ar <strong>de</strong> quem não sabe muito<br />

bem porque está ali mas quer ver até<br />

on<strong>de</strong> a coisa vai parar.<br />

Estava ali em retiro: “Para saber o<br />

que vou fazer da minha vida”. A dado<br />

momento da tar<strong>de</strong>, quando lhe<br />

perguntamos se vai continuar a fazer<br />

discos a cada semestre, atira: “Sei lá<br />

se vou continuar a fazer música”.<br />

Depois continua: “Sinto que ainda<br />

tenho canções para dar. Mas não<br />

penso sobre isso. Deixo que a música<br />

<strong>de</strong>cida. A obra tem <strong>de</strong> nascer <strong>de</strong> forma<br />

visceral”.<br />

Por mais contraditório que isso pareça<br />

num tipo doce e educado, essa<br />

visceralida<strong>de</strong> cabe-lhe bem. É o tipo<br />

<strong>de</strong> homem que está sossegado e discreto<br />

a noite toda antes <strong>de</strong> cometer<br />

um acto inesperado só para ver no<br />

que dá. É um solitário: “Não tenho<br />

grupos <strong>de</strong> amigos. Nunca tive”.<br />

Percebemos melhor as suas angústias<br />

acerca do seu futuro musical<br />

quando nos confessa que ficou ofendido<br />

por termos <strong>de</strong>scrito as suas canções<br />

como produto do tédio burguês.<br />

“Que é que sabes sobre a minha<br />

vida?”, atira, com o tom doce mesclado<br />

por certa amargura. “Não sou<br />

burguês. Sou um aristocrata falido”.<br />

É verda<strong>de</strong>: na família corre sangue<br />

azul, e embora não faça gala em falar<br />

disso, as obrigações inerentes interrompem-lhe<br />

o sono: herdou uma<br />

casa que está na família <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

XVI e não tem dinheiro para a<br />

arranjar porque gasta-o todo em instrumentos<br />

e microfones.<br />

Consegue ser <strong>de</strong>sconcertante sem<br />

esforço. É capaz <strong>de</strong> atirar uma frase<br />

como: “Só compro o jornal quando<br />

me dizem que escreveram sobre<br />

mim” com uma candura que retira<br />

qualquer vestígio <strong>de</strong> narcisismo. Por<br />

vezes parece um homem que não<br />

sente à vonta<strong>de</strong> “neste mundo com<br />

excesso <strong>de</strong> iconografia”. Durante uns<br />

minutos versa acerca do actual excesso<br />

<strong>de</strong> dados, <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> referências,<br />

<strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> Deus. “Temos<br />

dados sem informação, que não se<br />

transformam em conhecimento. Temos<br />

falta <strong>de</strong> sabedoria”.<br />

Não é - <strong>de</strong> todo - encaixável numa<br />

“figura-tipo”. Num segundo diz: “Tenho<br />

andado alheado das novida<strong>de</strong>s.<br />

Dou por mim com prateleiras <strong>de</strong> discos<br />

parecidas às dos meus pais e dos<br />

meus tios” e podíamos tomar esta<br />

frase como provocação blasé. Mas<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma longa pausa (faz pausas<br />

longas) conclui <strong>de</strong> forma impiedosa:<br />

“Anda tudo muito preocupado<br />

com a estética e pouco com o que<br />

interessa, que é a vida”.<br />

E está a falar muito a sério.<br />

Meio ano<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

“Nº1: Sessão<br />

<strong>de</strong> Cezimbra”,<br />

eis “Muda Que<br />

Muda”. O mais<br />

idiossincrático<br />

bala<strong>de</strong>iro<br />

da nação<br />

transformouse<br />

no rei das<br />

canções<br />

para beira <strong>de</strong><br />

piscina <strong>de</strong><br />

“resort”<br />

<strong>de</strong> férias<br />

o<br />

Não po<strong>de</strong>mos<br />

coração<br />

adiar<br />

FOTOGRAFIAS DE VERA MARMELO<br />

“Muda Que Muda” é o segundo disco <strong>de</strong> João Coração em seis meses. Vê-o transformado em Gains b<br />

arruinado dançando um último bolero. É um disco <strong>de</strong> Verão, mas cheio <strong>de</strong> angústia, como o seu eni g<br />

12 • Sexta-feira 10 Julho 2009 • Ípsilon

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!