Dança Carol Prieur em “Orphée et Eurydice”, que na leitura <strong>de</strong> Chouinard é uma imaginativa celebração do <strong>de</strong>sejo, da luxúria e do sexo Olhar para trás também p Marie Chouinard regressa a Portugal com uma versão pessoalíssima do mito <strong>de</strong> Orfeu e Eurídice, i em olharmos para trás. T A primeira vez que Marie Chouinard veio a Portugal foi em 2002, apresentando no Rivoli – Teatro <strong>Municipal</strong>, no Porto, “Les 24 Prelu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Chopin” (1998) e “Le cri du mon<strong>de</strong>” (2000). Agora que vamos po<strong>de</strong>r ver em Portugal “Orphée et Eurydice”, estreada em 2008 e que encerra o ciclo Dancem!09, a <strong>de</strong>correr no Porto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> Junho, aquelas duas peças parecem pertencer a uma outra assinatura. As dinâmicas alternadas que constituíam a obra inspirada na obra <strong>de</strong> Chopin, dando margem para diálogos entre força e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za a partir das marcas <strong>de</strong>ixadas pelos solos, duos, ou trios dançados pelo conjunto da companhia, <strong>de</strong>ram lugar a uma massa disforme, on<strong>de</strong> não parece haver regras. “Orphée et Eurydice”, na sua imaginativa celebração do <strong>de</strong>sejo, da luxúria e do sexo, é a pedra <strong>de</strong> toque <strong>de</strong> um discurso que se autonomizou <strong>de</strong> uma reciclagem do mo<strong>de</strong>rnismo norte-americano transvestido pelas famílias coreográficas europeias, dando lugar à singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um discurso que partiu da exploração das tensões criadas pelo movimento para chegar a uma ficcionalização <strong>de</strong>ssas mesmas tensões. São <strong>de</strong>sse período as suas leituras <strong>de</strong> “L’Après-midi d’un faune” (1987) “Sagração da Primavera (1993, remontada para o Ballet Gulbenkian em 2003) e “Prélu<strong>de</strong> à l’après-midi d’un faune” (1994), hoje peças que remetem para um tempo on<strong>de</strong> a coreógrafa buscava na ultrapassagem da linearida<strong>de</strong> uma lisura cénica que fosse progressivamente disruptiva. Eram tempos <strong>de</strong> pesquisa mais centrada nos efeitos que o movimento podia provocar no corpo e que teve o seu momento alto em “Le cri du mon<strong>de</strong>”, on<strong>de</strong> os corpos, explorando essa tensão, buscavam formas <strong>de</strong> a subverterem. A mesma i<strong>de</strong>ia voltou em “Body Remix - Goldberg Variations”, apresentado no CCB, em <strong>Lisboa</strong>, em 2006. Quem se lembrar dos corpos sustentados por muletas a quererem rasgar aquelas limitações, abrindo assim espaço para um outro corpo menos autómato e capaz <strong>de</strong> se lançar numa voragem criativa que não <strong>de</strong>via nada à ilustração, vai encontrar em “Orphée et Eurydice” o mesmo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> abertura do corpo para o espaço e <strong>de</strong>ste para algo mais que a metáfora. A peça está longe <strong>de</strong> ser consensual e eleva o trabalho <strong>de</strong> Chouinard a um outro patamar. A sua distanciação da tragédia dos amantes amaldiçoados faz-se não na exploração gratuita da violência contida na história, mas numa autonomização, fundamentalmente conceptual, on<strong>de</strong> a narrativa se torna secundária e formal servindo assim, e apenas, <strong>de</strong> pretexto para uma celebração da liberda<strong>de</strong> que as escolhas difíceis garantem. A liberda<strong>de</strong> da escolha Desta vez Chouinard não vem a Portugal, entrou <strong>de</strong> férias há dias e por isso não po<strong>de</strong> falar com o Ípsilon. Quem nos aten<strong>de</strong> o telefone é Carol Prieur, bailarina na companhia que leva o mesmo nome da coreógrafa e que <strong>de</strong>la faz parte há 14 anos. A bailarina revela que esta peça “vai às raízes <strong>de</strong> Marie Chouinard como intérprete, on<strong>de</strong> existia um caos criativo e diferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura”. “Orfeu et Eurídice”, o mito, conta a história <strong>de</strong> um homem e <strong>de</strong> uma mulher que se <strong>de</strong>scobrem ligados pelo <strong>de</strong>stino e, por isso, dispostos a <strong>de</strong>safiar os <strong>de</strong>uses. Orfeu insiste em resgatá-la do Inferno e o que lhe é pedido é que nunca olhe para trás, sob prejuízo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r Eurídice para sempre. Inevitavelmente Orfeu <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ce aos <strong>de</strong>uses e é culpado pela morte da amada. Orfeu morrerá, com Chouinard escolhe apresentar os <strong>de</strong>uses como seres divertidos, pân<strong>de</strong>gos, <strong>de</strong>sresponsabilizandoos dos erros <strong>de</strong> Orfeu. E, assim, Orfeu não po<strong>de</strong>rá olhar para trás com raiva e culpá-los Eurídice nos braços, por vingança <strong>de</strong> uma das suas muitas amantes. “A história é universal e é apenas um veículo”, insiste a bailarina. “Há muito mais para além disso: o trabalho com o corpo, os músculos, os orgãos, com tudo o que é humano”. Chouinard trabalha os corpos dos bailarinos como uma massa disforme que vai moldando ao longo da peça. Se é verda<strong>de</strong> que <strong>de</strong>senvolve com eles um trabalho a partir das tensões dos movimentos, também é verda<strong>de</strong> que leva essa tensão mais longe, a uma espécie <strong>de</strong> possessão (tal como Marcel Camus fez no filme “Orfeu Negro”) luxuriante e sedutora. “Orphée et Eurydice”, na versão <strong>de</strong> Chouinard, com música original <strong>de</strong> Louis Dufort, parece situar-se no momento em que os <strong>de</strong>uses pe<strong>de</strong>m a Orfeu para os convencer a <strong>de</strong>volverem-lhe Eurídice, mostrando-lhe que há mais do que essa mulher. Há um mundo inteiro <strong>de</strong> prazer, <strong>de</strong> carne e paixão dispostos a receberem Orfeu. A vingança dos <strong>de</strong>uses – os bailarinos, cujas sensações Prieur <strong>de</strong>screve como “um gozo imenso, uma viagem magnífica e rara porque não temos muitas oportunida<strong>de</strong> para nos expressarmos <strong>de</strong> forma tão ampla” – faz-se, pelo menos assim parece na versão <strong>de</strong> Chouinard, porque Orfeu ousa dizer que não aos <strong>de</strong>uses e prosseguir com Eurídice, mesmo que morta. Chouinard escolhe apresentar os <strong>de</strong>uses como seres divertidos, pân<strong>de</strong>gos, <strong>de</strong>sresponsabilizando-os dos erros <strong>de</strong> Orfeu. E, assim, Orfeu não po<strong>de</strong>rá olhar para trás com raiva e culpálos. Carol Prieur diz que esta é “uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura porque enten<strong>de</strong> o trágico, a crueza e a intensida<strong>de</strong> do amor que une Orfeu e Eurídice. Na peça há momentos muito poéticos que alargam a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentimentos que se po<strong>de</strong>m transmitir” e, diz, “é natural, e expectável, que se possam ler as obras <strong>de</strong> forma correspon<strong>de</strong>nte”. Para a bailarina, o facto <strong>de</strong> se apresentar o submundo como “espaço <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>” quer também dizer que “Orfeu podia ser feliz ali” e que, no fundo, “escolhe o caminho que escolhe totalmente consciente do que está a per<strong>de</strong>r”. Burlesco musical Chouinard começa a peça com um prólogo on<strong>de</strong> percebemos claramente que não é a narrativa que lhe vai interessar. Ao longo da peça vamos assistindo a este festim <strong>de</strong>sregrado – “mas essa liberda<strong>de</strong> coreográfica <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um rigor intenso”, esclarece a bailarina a propósito das rígidas marcações <strong>de</strong> cena –, on<strong>de</strong> somos, também nós espectadores, seduzidos. O momento <strong>de</strong> viragem para essa partilha da responsabilida<strong>de</strong> acontece quando uma das bailarinas sai do palco e prolonga o movimento pela plateia, por cima das ca<strong>de</strong>iras e das cabeças dos espectadores pedindo-lhes, precisamente, para não olharem para trás. Nessa altura o amplo palco on<strong>de</strong> permanentemente entram a<strong>de</strong>reços transfere-se para a plateia, os bailarinos interrompem as suas sequencias alegóricas e fantasmáticas (umas apostadas na blasfémia, outras divertidas no gozo evi<strong>de</strong>nte da sua <strong>de</strong>sconstrução), as luzes, sempre quentes e hipnotizantes encan<strong>de</strong>iam os espectadores e a banda sonora transforma-se num burlesco musical on<strong>de</strong> antes vivia em crescente tensão. Nessa altura, em que já não se sabe quem foi buscar o quê ou quem e on<strong>de</strong>, abre-se o jogo <strong>de</strong>ste “Orphée et Eurydice”. A peça, explica-nos Carol, “é muito intuitiva, como é intuitivo o movimento da Marie, que nunca parte da história. A história chega sempre <strong>de</strong>pois”. Para ela, o “caos criativo” da peça não é mais do que uma “metaforização do mundo subterrâneo” on<strong>de</strong> Orfeu vai buscar Eurídice. “Estão lá os símbolos, como a serpente e a árvore, e está lá o gozo e o prazer”. E “Orphée et Eurydice” é, sobretudo, uma peça sobre o prazer. E as consequências <strong>de</strong> se ter prazer. Olhar para trás também po<strong>de</strong> ser uma boa hipótese, parece dizer Marie Chouinard. “Ela quer que abandonemos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber e ler directamente o que se está a passar”, explica Prieur. “A peça quer que as pessoas se relacionem com o que lhes é orgânico e, nesse caminho, que cheguem à essência da peça”. Por isso, Carol Prieur acredita que é uma tentativa <strong>de</strong> Chouinard afirmar “que somos veículos para algo maior”. Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos págs. 39 e 40 24 • Sexta-feira 10 Julho 2009 • Ípsilon
FOTOGRAFO o<strong>de</strong> ser uma boa hipótese , imaginativa celebração do <strong>de</strong>sejo, da luxúria e do sexo. No limite diz-nos que não há mal nenhum . Tiago Bartolomeu Costa Ípsilon • Sexta-feira 10 Julho 2009 • 25