O performer Andy Kaufman (1949-1984) é uma genealogia possível para o humor <strong>de</strong> <strong>Sacha</strong> <strong>Baron</strong> <strong>Cohen</strong> TIM WIMBORNE/REUTERS estava em todo o lado em digressão promocional. Aparições em figurinos surreais em todas as cida<strong>de</strong>s. Entrevistas <strong>de</strong>ntro da personagem (“Quero ser o austríaco mais famoso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Hitler”; “O filme que acabei <strong>de</strong> fazer é o mais importante documentário sobre um gay branco <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ‘A Paixão <strong>de</strong> Cristo’”). Filipe Homem Fonseca elogia-lhe a consistência. “<strong>Sacha</strong> <strong>Baron</strong> <strong>Cohen</strong> é o Dias Loureiro da comédia. Mantém a história até ao fim”. Como Andy Kaufman (1949-1984, performer americano – Jim Carrey interpretou-o em “Homem na Lua”), em relação ao qual nunca sabíamos on<strong>de</strong> acabava a personagem e começava o homem, é tudo parte do espectáculo. JUAN MEDINA/ REUTERS “É a socieda<strong>de</strong> do espectáculo, em que tudo é espectacularizado: a guerra, a política, o <strong>de</strong>sporto. E a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intervir nisso, surrealizando, é muito tentadora” Jel, humorista Espírito kamikaze E, como não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, com ele vem a polémica. A Gay and Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD) viu duas versões inacabadas do filme, a convite da Universal. E Rashad Robinson, director dos programas <strong>de</strong> média da GLAAD, foi à imprensa dizer que “as intenções <strong>de</strong> quem fez o filme estão no lugar certo – a sátira <strong>de</strong>ste género po<strong>de</strong> <strong>de</strong>smascarar a homofobia – mas ao mesmo tempo ele po<strong>de</strong> aumentar o <strong>de</strong>sconforto das pessoas em relação à nossa comunida<strong>de</strong>”. Eis a palavra-chave: <strong>de</strong>sconforto. Tal como a Human Rights Campaign, a GLAAD acha que “Brüno” <strong>de</strong>via vir com um aviso prévio. Qualquer coisa como: “Este filme tem como objectivo expor a homofobia”. Mas Aaron Hicklin, editor da revista “Out”, vê mais além. “O filme faz algo enormemente importante, que é mostrar que as atitu<strong>de</strong>s das pessoas po<strong>de</strong>m mudar, num segundo, quando elas se apercebem que és gay. Os ‘habituées’ dos multiplexes normalmente não se sentariam para ver uma palestra <strong>de</strong> duas horas sobre homofobia, mas é exactamente isso que vai acontecer”, disse ao “New York Times”. E vai pôr <strong>Sacha</strong> na capa <strong>de</strong> Agosto, tal como a “GQ” fez este mês nos EUA. Uma das mais-valias do fenómeno <strong>Cohen</strong> é a tal lógica das bonecas russas: há vários níveis <strong>de</strong> entendimento <strong>de</strong> uma piada, <strong>de</strong> uma caricatura, e se há espectadores que vão vê-lo “ao engano, acabam também por ser alvo da paródia. Isso é a sofisticação maior”, comenta Filipe Homem Fonseca. Não esquecendo os danos colaterais – neste caso os entrevistados, os apanhados. “Às vezes tem <strong>de</strong> haver baixas entre civis”, ri-se Filipe Homem Fonseca. “Isso faz parte do dispositivo. Quando fazes uma piada, mesmo quando contas uma simples anedota, há sempre uma rasteira.” O risco não é só para os incautos apanhados (que po<strong>de</strong>m ser muito pouco inocentes – “Uma coisa é eu fazer uma imitação do José Sócrates, outra é apanhar o José Sócrates à minha frente com o meu megafone. Tem muito mais força, força política”, sublinha Jel). Também sobra risco para os protagonistas que têm boas hipóteses <strong>de</strong> apanhar. Melhor ainda, garante Jel no seu espírito kamikaze. “Dispara a nossa adrenalina, é sem re<strong>de</strong>. Criativamente, é muito inspirador.” <strong>Cohen</strong>, na tal entrevista à “Rolling Stone”, apenas resume que o carinho intensivo dos seus pais lhe dá hoje “a força para sair para junto <strong>de</strong> uma multidão <strong>de</strong> pessoas que te o<strong>de</strong>iam”. No fundo, o mundo é a sua ostra e os EUA a sua pérola <strong>de</strong> experiência sociológica. Ou serão um irrecuperável grão <strong>de</strong> areia? Ele testa os limites porque “o timing é tão volátil que é rico para a comédia e [ele] vai atrás <strong>de</strong> coisas que nos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong>sconfortáveis, que nos testam”, postula Thompson no seu púlpito <strong>de</strong> peritagem pop. “Brüno” chega numa altura em que parece existir mais espaço para todos os tipos <strong>de</strong> comédia. Agora, diz-nos Thompson, nos EUA a última fronteira dos tabus é a palavra “preto”, mas continua a haver “regras diferentes para salas diferentes”. Se for a <strong>de</strong> Jay Leno, como era a <strong>de</strong> Herman José no infame episódio censório da Rainha Santa, é melhor não abusar. O “mainstream” é <strong>de</strong>masiado condicionado pelas regras e convenções genéricas. Nos nichos, no cabo, já é outra coisa. A chegada <strong>de</strong> mais um objecto <strong>Cohen</strong> à comédia é como a chegada <strong>de</strong> mais um filme <strong>de</strong> Michael Moore aos EUA – e cabe agora a “Brüno” provar se a partida seguinte do palhaço da turma vale a pena. Mas uma coisa ele conseguiu: é um dos ingredientes <strong>de</strong> um caldo cultural mais tolerante e ajudou a confeccioná-lo porque a cada aparição mais ultrajante/hilariante (risque o que não interessa) se clarificam os novos limites. E <strong>de</strong>pois há o resto. “Uma das razões pelas quais vemos mais <strong>de</strong>sta comédia hoje é porque o ambiente cultural é muito mais tolerante. Temos canais <strong>de</strong> cabo on<strong>de</strong> estas coisas po<strong>de</strong>m passar, uma indústria cinematográfica com um sistema <strong>de</strong> classificações que as permitem. Há um lugar para elas que não existia nos anos 1950”, diz Robert Thompson. “Outra coisa é um ambiente cultural tão fragmentado, com milhares <strong>de</strong> músicas disponíveis no iTunes, um número infinito <strong>de</strong> coisas na Internet e 300 canais <strong>de</strong> cabo, muitos dos quais a produzir programação original. É preciso fazer uma coisa muito escandalosa para chamar a atenção”. Diríamos que “Brüno” o conseguiu. “Olhem para o Cristiano Ronaldo. A forma como ele se veste é totalmente Brüno”, disse ao “Guardian” o criador Julien MacDonald RUI GAUDÊNCIO Cristiano Ronaldo “é totalmente Brüno” Segundo o criador Julien MacDonald, Brüno é plausível, existente. A frase promocional diz tudo: “Borat é tão 2006”. Até parece que ouvimos o “tão” arrastado e afectado que um “fashionista” diria para comentar um fenómeno passado e ultrapassado. Brüno é o guardião das tendências, figura que conjuga estereótipos gay, sim, mas também “fashion”. Com toda a controvérsia e <strong>de</strong>bate a girar em torno da temática homossexual, o aspecto moda cai para segundo plano. Mas o mundo da moda também terá motivos para se contorcer na ca<strong>de</strong>ira, talvez mais do que quando viu “Zoolan<strong>de</strong>r”, “O Diabo Veste Prada” ou “Pronto-a-Vestir”, <strong>de</strong> Altman. O “Telegraph” pôs-se a comparar os comentários no Twitter feitos por Brüno e Karl Lagerfeld, o mestre da casa Chanel, e <strong>de</strong>safiou os leitores a encontrar as diferenças. O grau <strong>de</strong> comicida<strong>de</strong> equiparava-se. A questão é, para o jornalista Simon Mills (que até já <strong>de</strong>sfilou na passerelle), que “o mundo da moda é em gran<strong>de</strong> parte imune à paródia essencialmente porque faz um trabalho relativamente bom a parodiar-se, constantemente”. <strong>Sacha</strong> <strong>Baron</strong> <strong>Cohen</strong> não falou muito sobre a construção da sua personagem, mas Brüno é o exagero do exagero, o que no fundo é uma certa parcela <strong>de</strong>sta cultura focada na estética e no “look”. Brüno resulta porque “é tão, tão plausível”, escreve Mills. A excentricida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brüno é apenas um espelho <strong>de</strong> Feira Popular posto à frente da tribo “fashionista”. Já na rodagem do filme, <strong>Cohen</strong> foi <strong>de</strong>tido <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter andado pelos bastidores da Semana da Moda <strong>de</strong> Milão e <strong>de</strong> ter “caído” na passerelle durante um <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> Agatha Ruiz <strong>de</strong> la Prada. O criador britânico Julien MacDonald comenta, divertido, que Brüno é, <strong>de</strong> facto, plausível, possível, existente. E toca, em <strong>de</strong>clarações ao “Guardian”, numa referência próxima ao planeta Portugal: Ronaldo. “Há <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> homens como Bruno em East London ou à porta da Topshop num sábado à tar<strong>de</strong>. Já vi homens a usar o ‘look’ total tirolês que ele tem. E, honestamente, o novo corte <strong>de</strong> cabelo <strong>de</strong> Bruno é basicamente uma cópia directa do cabelo que os manequins masculinos tinham no último <strong>de</strong>sfile da Gucci. E não são só os gay. Olhem para o Cristiano Ronaldo. A forma como ele se veste é totalmente Brüno”. Ronaldo é muitas vezes citado como uma forte influência na moda masculina portuguesa. Especialmente pelo factor pólo cor-<strong>de</strong>-rosa: antes uma peça <strong>de</strong> roupa conotada pela cor com um universo homossexual, agora está no tronco <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> “machos latinos” país fora. A diversida<strong>de</strong> fica-lhes bem. J.A.C. GREG WOOD/AFP PHOTO 8 • Sexta-feira 10 Julho 2009 • Ípsilon
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