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Sacha Baron Cohen - Fonoteca Municipal de Lisboa

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Matthias Langhoff teve um pesa<strong>de</strong>lo<br />

O mundo contemporâneo é o cadáver esquisito que Matthias Langhoff, um dos monstros inclassificáveis do teatro europeu, <strong>de</strong>vora em “Deus como<br />

Paciente - Assim Falava Isidore Ducasse”, dias 13 e 14 no Festival <strong>de</strong> Almada. Visto daqui, é um lugar terrível. Inês Nadais<br />

Quando era pequeno, o filho <strong>de</strong><br />

Matthias Langhoff acordava <strong>de</strong><br />

manhã “satisfeitíssimo” a dizer que<br />

“tinha feito” (Matthias Langhoff<br />

respon<strong>de</strong> às nossas perguntas em<br />

francês, por “email”, e os franceses<br />

não “têm” pesa<strong>de</strong>los: fazem-nos)<br />

“um enorme pesa<strong>de</strong>lo”.<br />

Imaginamos Matthias Langhoff<br />

a acordar <strong>de</strong> manhã, satisfeitíssimo<br />

(fantasia nossa: ele não po<strong>de</strong>ria<br />

estar mais angustiado com o que<br />

vê <strong>de</strong> manhã, quando acorda,<br />

<strong>de</strong>baixo do prédio on<strong>de</strong> vive),<br />

a dizer o mesmo. “Deus como<br />

Paciente - Assim Falava Isidore<br />

Ducasse”, o espectáculo construído<br />

a partir dos “Cantos <strong>de</strong> Maldoror”<br />

do Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lautréamont<br />

(pseudónimo <strong>de</strong> Isidore Ducasse)<br />

que a Compagnie Rumpelpumpel<br />

traz ao Festival <strong>de</strong> Almada nos<br />

dias 13 e 14, é um enorme - e<br />

maravilhoso - pesa<strong>de</strong>lo. Visto das<br />

noites mal dormidas <strong>de</strong> Langhoff<br />

- e das escadas da Comédie<br />

Française, a gran<strong>de</strong> casa do teatro<br />

<strong>de</strong> repertório em Paris -, o mundo<br />

é um lugar terrível: “Para falar<br />

do escândalo contemporâneo,<br />

e apenas do escândalo que eu<br />

conheço, acho que 365 edições do<br />

seu jornal não seriam suficientes.<br />

Enquanto a injustiça mantiver o<br />

nosso mundo no escândalo, não<br />

posso mudar <strong>de</strong> assunto”.<br />

Matthias vê o escândalo em<br />

todo o lado - <strong>de</strong>baixo do prédio<br />

Três actores são uma multidão<br />

na nova criação <strong>de</strong> Matthias<br />

Langhoff<br />

on<strong>de</strong> mora, on<strong>de</strong> há “um grupo<br />

permanente <strong>de</strong> sem-abrigo cujo<br />

discurso, na sua incoerência<br />

alcoolizada”, lhe faz “lembrar os<br />

velhos contos que dizem sempre<br />

a verda<strong>de</strong>”, nas lojas chiques do<br />

Boulevard Raspail com o seus<br />

sapatos a mil euros que lhe dão<br />

“vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> partir os vidros<br />

das montras”, e nas escadas da<br />

Comédie Française, o lugar on<strong>de</strong><br />

começou a ter pesa<strong>de</strong>los com<br />

“Deus como Paciente”. “Um dia”,<br />

explica ao Ípsilon, “fui à Comédie<br />

Française on<strong>de</strong> tinha uma reunião<br />

para discutir um projecto. Para<br />

entrar, fui obrigado a passar pelos<br />

pobres que dormem <strong>de</strong>baixo das<br />

arcadas - e enquanto subia aquela<br />

bela escadaria compreendi que<br />

Racine e Molière estão muito longe<br />

<strong>de</strong> mim”. Voltou-se, sentou-se<br />

num banco ao lado do teatro: “Era<br />

um belo dia <strong>de</strong> sol, havia gente<br />

a passear, e vi um negro que,<br />

enquanto toda a gente se divertia,<br />

esvaziava sem parar os caixotes<br />

do lixo e controlava tudo o que as<br />

pessoas <strong>de</strong>itavam fora, à procura<br />

<strong>de</strong> qualquer coisa que pu<strong>de</strong>sse<br />

meter ao bolso. Tinha a câmara<br />

comigo e filmei. Esse homem é<br />

um dos actores principais <strong>de</strong>ste<br />

espectáculo”.<br />

O filme que Matthias Langhoff<br />

fez nessa tar<strong>de</strong> é a primeira<br />

coisa que vemos em “Deus como<br />

Paciente” - como se o nosso mundo<br />

fosse, mais do que um escândalo,<br />

um escândalo espectacular. Os<br />

três actores que escolheu para<br />

irem com ele em direcção ao<br />

abismo - Anne-Lise Heimburger,<br />

Frédérique Loliée e André Wilms,<br />

que há poucos anos vimos a <strong>de</strong>ixar<br />

a pele, sozinho, em “Eraritjaritjaka”,<br />

<strong>de</strong> Heiner Goebbels, no Porto - só<br />

aparecem <strong>de</strong>pois, misturando-se<br />

uns com os outros (“Construí uma<br />

história com três personagens<br />

<strong>de</strong> galáxias diferentes [anjos,<br />

prostitutas, vagabundos,<br />

marinheiros, loucos, enfermeiras,<br />

artistas <strong>de</strong> cabaré] que atravessam<br />

o passado, o presente e o futuro”)<br />

e com as imagens do filme. Nunca<br />

sabemos bem quem estamos a ver<br />

e quem estamos a ouvir, que parte<br />

da história está à nossa frente em<br />

carne viva, e a três dimensões, e<br />

que parte da história está à nossa<br />

frente apenas como assombração:<br />

“Como na minha cabeça não é<br />

claro o que pertence ao teatro e o<br />

que pertence ao cinema, e como<br />

também não é claro se o teatro<br />

está no chão ou em cima do palco,<br />

misturei tudo, como faço sempre.<br />

Agora que durmo cada vez menos,<br />

é possível que tenha até misturado<br />

<strong>de</strong> mais”, diz-nos. O pesa<strong>de</strong>lo<br />

que ele fez a dormir acordado, e<br />

que nos faz passar do cemitério<br />

ao naufrágio e do<br />

naufrágio ao “musichall”,<br />

como nesses<br />

apagões da consciência<br />

que acontecem durante o sono,<br />

é um transe, uma colagem <strong>de</strong><br />

experiências <strong>de</strong> vida (uma<br />

travessia marcada pelo exílio, por<br />

todos os <strong>de</strong>vastadores traumas da<br />

condição alemã, pelo comunismo<br />

e, em geral, por todas as feridas<br />

abertas do século XX europeu),<br />

<strong>de</strong> visões <strong>de</strong> Paris, do mundo em<br />

que vivemos - e das coisas que<br />

continua a re<strong>de</strong>scobrir “na língua<br />

<strong>de</strong> Lautréamont”.<br />

O espectáculo do estrondo<br />

É um francês singular - francês<br />

<strong>de</strong> estrangeiro, como o <strong>de</strong>le<br />

(Isidore Ducasse nasceu no<br />

Uruguai, Matthias Langhoff<br />

nasceu na Suíça, em 1941, filho <strong>de</strong><br />

um encenador comunista que já<br />

tinha estado internado em dois<br />

campos <strong>de</strong> concentração nazis<br />

e <strong>de</strong> uma actriz judia, ambos <strong>de</strong><br />

nacionalida<strong>de</strong> alemã). “Quando<br />

apanho o metro em Paris, quando<br />

vejo a energia <strong>de</strong>ssas pessoas, na<br />

sua maioria negras, a energia para<br />

continuar até à próxima estação,<br />

e ouço a mistura <strong>de</strong> monólogos<br />

e <strong>de</strong> diálogos, sinto-me próximo<br />

da língua <strong>de</strong> Ducasse. Não é<br />

um falso francês, é um francês<br />

diferente do francês. A língua<br />

<strong>de</strong>le funciona por imagens. Essa<br />

maneira <strong>de</strong> utilizar uma língua<br />

- ou <strong>de</strong> se encontrar numa língua<br />

- é-me familiar. Compreendo o<br />

francês do Lautréamont melhor e<br />

mais facilmente do que o francês<br />

<strong>de</strong> autores <strong>de</strong> origem francesa”.<br />

Sabe essa língua <strong>de</strong> cor - leu “Os<br />

“Se fosse tudo<br />

perfeito, não vejo<br />

por que razão<br />

continuaria<br />

a fazer teatro”<br />

Matthias Langhoff<br />

Deus<br />

como<br />

Paciente<br />

– Assim Falava<br />

Isidore<br />

Ducasse<br />

A partir <strong>de</strong> Isidore Ducasse<br />

Almada, Teatro <strong>Municipal</strong><br />

– Sala Principal, 2ª 13,<br />

e 3ª 14, às 21h30<br />

Cantos <strong>de</strong> Maldoror” durante a<br />

juventu<strong>de</strong>, “numa bela tradução<br />

alemã”, e releu-os mais tar<strong>de</strong> em<br />

francês. “É difícil explicar como<br />

fiz a montagem do texto,<br />

porque tenho-o na<br />

cabeça. Primeiro<br />

imaginei a história<br />

das personagens, e<br />

<strong>de</strong>pois fui buscar<br />

as palavras. Sabia<br />

exactamente<br />

on<strong>de</strong> estavam”,<br />

esclarece. De resto,<br />

há momentos em<br />

que o significado<br />

<strong>de</strong>ssas palavras é<br />

marginal: “Hoje, a catástrofe<br />

que está diante <strong>de</strong> nós cheganos<br />

direitinha do outro lado do<br />

Atlântico. Fiz questão <strong>de</strong> levar o<br />

grupo a passar um dia no mar, para<br />

que, à maneira <strong>de</strong> Lautréamont<br />

e através do ruído do rebentar<br />

das ondas na costa, os actores<br />

compreen<strong>de</strong>ssem a mensagem que<br />

era preciso fazer passar. Porque<br />

é a música do estrondo <strong>de</strong>ssas<br />

vagas que <strong>de</strong>vemos dar a ouvir<br />

com Isidore Ducasse”, escreveu<br />

no programa que acompanhou a<br />

apresentação do espectáculo no<br />

Théâtre <strong>de</strong> la Ville, em Paris.<br />

“Deus como Paciente” é o<br />

espectáculo <strong>de</strong>sse estrondo - do<br />

estrondo que o mundo faz a partirse.<br />

É <strong>de</strong>ssa energia <strong>de</strong>strutiva que<br />

o teatro <strong>de</strong> Langhoff se alimenta,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros trabalhos no<br />

Berliner Ensemble da fase Brecht,<br />

em 1962, até às colaborações<br />

com Heiner Müller, que foi o seu<br />

melhor amigo. Continua a fazer<br />

teatro para se lembrar <strong>de</strong>le (“Para<br />

um homem antigo como eu, é<br />

importante manter o diálogo<br />

com um velho amigo”) e para<br />

sobreviver ao escândalo do mundo<br />

contemporâneo: “Se fosse tudo<br />

perfeito, não vejo por que razão<br />

continuaria a fazer teatro”. Como<br />

nem tudo é perfeito, precisamos<br />

dos pesa<strong>de</strong>los <strong>de</strong>le para sobreviver<br />

à experiência <strong>de</strong> ser europeu<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> duas guerras mundiais,<br />

<strong>de</strong> uma Shoah, da bomba atómica<br />

e do estalinismo. É um “tesouro<br />

nacional vivo” do teatro europeu,<br />

como lhe chamou Bruno Tackels,<br />

da revista “Mouvement”, mas<br />

sente-se melhor no papel <strong>de</strong> besta<br />

negra (não se fixa em lado nenhum<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1985, à excepção dos 18<br />

meses que passou no Théâtre Vidy,<br />

<strong>de</strong> Lausanne, entre 1989 e 1991, e<br />

dos dois anos em que co-dirigiu<br />

o Berliner Ensemble, entre 1992 e<br />

1993): “De tempos a tempos, sou<br />

obrigado a institucionalizar-me,<br />

mas não tenho pressa. Depois<br />

<strong>de</strong> mortos, acabamos todos na<br />

instituição”.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> teatro págs. 30 e 40<br />

22 • Sexta-feira 10 Julho 2009 • Ípsilon

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