O que fizemos à memória do século XX? - Fonoteca Municipal de ...
O que fizemos à memória do século XX? - Fonoteca Municipal de ...
O que fizemos à memória do século XX? - Fonoteca Municipal de ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Um mapa<strong>de</strong>scontínuoda arte<strong>de</strong> habitarCorre-se o risco nesta exposição <strong>que</strong> dum la<strong>do</strong> se fale<strong>de</strong> casas e <strong>do</strong> outro, por<strong>que</strong> não se vêem casas, se percebaoutra coisa ou até coisa nenhuma. É um risco assumi<strong>do</strong>,<strong>que</strong> po<strong>de</strong>rá ser mitiga<strong>do</strong> pelo valor intrínseco<strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s. Pedro Cortesão Monteiro*Convida<strong>do</strong>(Ao fun<strong>do</strong> das escadas, à portada exposição, estacionaram umVW “carocha”. É provável <strong>que</strong>os visitantes não o estranhem,<strong>que</strong> o contornem com relativaindiferença, acostuma<strong>do</strong>s <strong>que</strong>estão a <strong>de</strong>sviar-se <strong>de</strong>ste tipo<strong>de</strong> obstáculos: em Lisboa, <strong>de</strong>carros <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s nos sítios maisinusita<strong>do</strong>s; em museus, <strong>de</strong>objectos <strong>que</strong> compreen<strong>de</strong>m mal.)“Falemos <strong>de</strong> casas: entre oNorte e o Sul” toma um verso <strong>de</strong>Herberto Hel<strong>de</strong>r como inspiraçãoe Portugal como ponto <strong>de</strong> vista.Nesta exposição, a principal daTrienal <strong>de</strong> Arquitectura <strong>de</strong> Lisboa,preten<strong>de</strong> fazer-se uma reflexãosobre arquitectura e vida a partir<strong>de</strong> múltiplas formas <strong>do</strong> habitar. Oconjunto <strong>de</strong> obras escolhidas nãoveicula um discurso programáticoou estético, e muito menosencerra uma tese. Pelo contrário,o mo<strong>de</strong>lo a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> <strong>do</strong> confronto<strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s muito diversos, daresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> distintoscomissários (Pedro Pacheco e LuísSantiago Baptista — Portugal; PeterCook — Norte; Diogo Seixas Lopes— Suíça; Ana Vaz Milheiro e ManuelGraça Dias — Sul), a <strong>que</strong> há ainda<strong>que</strong> acrescentar os <strong>do</strong>is núcleos<strong>de</strong> abertura, levou, naturalmente,a uma certa <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> <strong>do</strong>to<strong>do</strong>, resultante das perspectivascontidas nas partes. Do confronto<strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s tão distintas,preten<strong>de</strong>-se evi<strong>de</strong>nciar ascondições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> da(s)arquitectura(s). Este ponto <strong>de</strong>partida admite <strong>que</strong> “as casas”possam ser muitas coisas e coisasmuito distintas: casas <strong>de</strong> facto,nas mais diversas concretizaçõestipológicas, mas também coisas<strong>que</strong> apenas po<strong>de</strong>m ser entendidascomo casas se o senti<strong>do</strong> foralarga<strong>do</strong> a uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> pertençaa uma qual<strong>que</strong>r realida<strong>de</strong> física,social ou cultural. Esta aberturaalarga muito a natureza daarquitectura exposta e po<strong>de</strong>tornar mais difícil a comunicação,corren<strong>do</strong>-se o risco <strong>que</strong> dum la<strong>do</strong>se fale <strong>de</strong> casas, e <strong>do</strong> outro, por<strong>que</strong>não se vêem exactamente casas,se perceba outra coisa ou atécoisa nenhuma. Esse é um riscocuratorial assumi<strong>do</strong>, <strong>que</strong> po<strong>de</strong>ráser mitiga<strong>do</strong> pelo valor intrínseco<strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s.O <strong>de</strong>senho da exposição (<strong>de</strong>Sofia Saraiva, Ana Miguel ePedro Roga<strong>do</strong>) assenta numafachada cinzenta <strong>que</strong> vai sen<strong>do</strong>sucessivamente <strong>do</strong>brada, assimsugerin<strong>do</strong> percursos, largos,pontos <strong>de</strong> vista. No espaçocentral situa-se o núcleo <strong>que</strong>inci<strong>de</strong> sobre Portugal e <strong>que</strong>integra diversas tipologiasresi<strong>de</strong>nciais, com pre<strong>do</strong>minânciada habitação unifamiliar. Dessecentro, olham-se os outros pólosda exposição: o Norte rico e oSul <strong>de</strong> três cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> se falaportuguês (Luanda, Maputo eRecife). No meio, a Suíça, <strong>de</strong> on<strong>de</strong>é originária parte substancialda arquitectura <strong>que</strong> nas últimasdécadas mais influência exerceusobre a<strong>que</strong>la feita em Portugal.A oposição Norte/Sul — o Norte<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-Providência, <strong>do</strong>conforto, da ocupação esparsa,das cida<strong>de</strong>s consolidadas; o Sulda imprevidência, <strong>do</strong> confronto,da sobreocupação e das cida<strong>de</strong>sinformais — materializa-se,em termos expositivos, no<strong>de</strong>libera<strong>do</strong> contrasteexistente entre o “sector nórdico”da exposição (azul vibrante,ondulante) e o resto <strong>do</strong> espaço(cinzento opaco, angular).Suspeita-se <strong>que</strong> isso tantopossa <strong>de</strong>ver-se ao facto <strong>de</strong> o seucomissário — o arquitecto inglêsPeter Cook — <strong>que</strong>rer marcar aindividualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> núcleo aseu cargo, como <strong>de</strong> se <strong>que</strong>rerdistanciar <strong>do</strong> entorno físico <strong>do</strong>edifício <strong>do</strong> Centro Cultural <strong>de</strong>Belém <strong>que</strong>, numa passagemrecente por Lisboa, classificoucomo “um complexo horren<strong>do</strong>,bombástico, quase neofascista”.Seja como for, resulta assim(ainda) mais evi<strong>de</strong>nte a distânciaentre a<strong>que</strong>la península <strong>do</strong>bem-estar e o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Omesmo contraste se evi<strong>de</strong>nciana representação, agora quasesimétrica, <strong>de</strong> duas “gatedcommunities”: <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, trêsprojectos inseri<strong>do</strong>s no “campus”da gigante farmacêutica suíçaNovartis — uma ilha securitáriae rica no meio <strong>de</strong> outra ilhasecuritária e rica; <strong>do</strong> outro, umainstalação representan<strong>do</strong> oscon<strong>do</strong>mínios fecha<strong>do</strong>s on<strong>de</strong> serefugia a alta burguesia assustadadas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Sul. Estasrepresentações <strong>do</strong>s núcleosnórdico e suíço, mesmo <strong>que</strong> onão façam <strong>de</strong>liberadamente,sublinham a distância da<strong>que</strong>lasrealida<strong>de</strong>s face ao resto <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>. E ainda <strong>que</strong>, no caso suíço,sejam portugueses <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s trêsprojectos apresenta<strong>do</strong>s, isso nãoos torna necessariamente maisProjectos das universida<strong>de</strong>sportuguesas para o bairroda Cova da MouraOs arquitectos<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>do</strong>dinheiro <strong>de</strong> outrem.A realização <strong>do</strong>s seussonhos,eventualmenteintermedia<strong>do</strong>s pelossonhos <strong>de</strong> outros,estará sempre<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> terceiros.Mas o futuro estásempre a mudar.E os homenscontinuam a precisar<strong>de</strong> uma vista <strong>do</strong> céupróximos e talvez até acentue aestranheza.Voltan<strong>do</strong> ao núcleo português,a larga maioria <strong>do</strong>s projectos aíapresenta<strong>do</strong>s não se confrontacom situações <strong>de</strong> escassez <strong>de</strong>meios. Os projectos escolhi<strong>do</strong>ssão-no, sobretu<strong>do</strong>, em funçãoda diversida<strong>de</strong> tipológica e dasdiferentes condições <strong>de</strong> inserçãono território, e menos <strong>de</strong> <strong>que</strong>stõesprogramáticas. Nas fotografias<strong>que</strong> André Cepeda fez <strong>de</strong>stesprojectos, as casas não estão, comoé habitual, vazias, intocadas. Têmmóveis e coisas por arrumar ecães e telemóveis em cima dasmesas. Isso, convenhamos, é umanovida<strong>de</strong> bem-vinda. Mas, aindaassim, tu<strong>do</strong> aparenta ser caroe fazer parte <strong>de</strong> um bom gostoperfeitamente encena<strong>do</strong>. Apenasnas fotografias <strong>de</strong> um bairro socialse avistam umas cortinas feias.Mas aí estamos <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>de</strong> fora dascasas, e não chegamos a entrar.Nesse senti<strong>do</strong>, estas são casas <strong>que</strong>falam com pronúncia <strong>do</strong> Norte. É oPortugal (<strong>do</strong> Sul) a olhar para cima.A exposição não começa, porém,aqui. Voltemos então à entrada e aocarocha <strong>que</strong> lá estacionaram.O futuro como ele era antesFaz parte da retórica mo<strong>de</strong>rnistaesta coisa <strong>de</strong> confrontar carrose casas. Fotografar carrosestaciona<strong>do</strong>s à porta das casas.Le Corbusier fê-lo repetidamentecom as “villas” da década <strong>de</strong>20 e, em particular, numa série<strong>de</strong> fotografias da “Villa Stein”(1927). A i<strong>de</strong>ia subjacente eratornar evi<strong>de</strong>nte como a<strong>que</strong>les<strong>do</strong>is objectos, a casa e o (seu)carro, produtos <strong>de</strong> lógicas <strong>que</strong> seambicionavam semelhantes, seequivaliam. O tempo encarregarse-ia<strong>de</strong> os separar. O carroenvelheceu muito mais <strong>de</strong>pressa<strong>do</strong> <strong>que</strong> a<strong>que</strong>la “casa <strong>do</strong> futuro”<strong>de</strong> Le Corbusier, o <strong>que</strong>, se po<strong>de</strong>ráser lisonjeiro para a casa, nãoé necessariamente bom para aarquitectura. Vistos hoje, o carroda fotografia é uma velhariaenquanto a casa será ainda“<strong>de</strong>masia<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rna”. Assim,a<strong>que</strong>la <strong>que</strong> se pretendia fosse ametáfora perfeita da arquitecturamaquinista transformou-se numarepresentação, tão involuntáriaquanto elo<strong>que</strong>nte, dumacerta incomunicabilida<strong>de</strong> daarquitectura.Também o carocha (ummuito pareci<strong>do</strong> com este aquipara<strong>do</strong>) serviu simultaneamente<strong>de</strong> inspiração e <strong>de</strong> meio <strong>de</strong>locomoção aos autores <strong>de</strong> um<strong>do</strong>s projectos instiga<strong>do</strong>res daexposição. Trata-se <strong>do</strong> projectoda “House of the Future” [ou HOF,como também lhe chamariam]<strong>de</strong> Alison Smithson (1998-1993) ePeter Smithson (1923-2003), casal<strong>de</strong> arquitectos integrantes <strong>do</strong>Team 10 e <strong>do</strong> In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt Group.Feita para a exposição “The DailyMail I<strong>de</strong>al Home Exhibition”, em1956, a casa tinha como horizonteum futuro distante 25 anos epretendia ser um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> umacasa replicável para o futuro.Como afirma Max Risselada,comissário <strong>de</strong>ste núcleo daexposição, os Smithson não sepreocupavam só com a forma e aorganização espacial da HOF, massobretu<strong>do</strong> com as possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os futuros habitantes <strong>de</strong>la seapropriarem. A ma<strong>que</strong>ta à escalareal, habitada, <strong>que</strong> os visitantesda exposição <strong>de</strong> 56 contornavame apreciavam a partir <strong>do</strong> exterior,era construída com estrutura epainéis <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira emassa<strong>do</strong>se pinta<strong>do</strong>s, procuran<strong>do</strong> simulara i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um material contínuo,molda<strong>do</strong>, plástico. Essa simulação<strong>de</strong>nunciava uma impossibilida<strong>de</strong>técnica e o futuro adivinha<strong>do</strong><strong>de</strong>ssa casa <strong>do</strong> futuro. Não seconcretizou em 1981 como nãose concretizou até hoje uma talmaneira <strong>de</strong> fazer casas.A HOF é um <strong>do</strong>s pontos <strong>de</strong>partida para o repto <strong>que</strong> o cura<strong>do</strong>rgeral da Trienal, Delfim Sar<strong>do</strong>,lançou aos vários comissáriosda exposição. O outro é umacontecimento <strong>que</strong> nos é maispróximo: o processo SAAL (ServiçoAmbulatório <strong>de</strong> Apoio Local),<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> durante pouco mais<strong>de</strong> um ano, nos meses <strong>que</strong> sesuce<strong>de</strong>ram ao 25 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1974.Os <strong>do</strong>is eventos são tão distintos no<strong>que</strong> respeita às suas circunstânciase aos seus propósitos <strong>que</strong> pareceum exercício fútil tentar encontrar18 • Sexta-feira 15 Outubro 2010 • Ípsilon