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O que fizemos à memória do século XX? - Fonoteca Municipal de ...

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LivrosNUNO FERREIRA SANTOSFicçãoFantasia<strong>de</strong> morteOu <strong>de</strong> como um romance<strong>de</strong> ossos parti<strong>do</strong>s po<strong>de</strong> sercomposto da melhor poesia.Rui CatalãoSôbolos Rios <strong>que</strong> VãoAntónio Lobo AntunesDom QuixotemmmmnLeituraAs peças acumulamsee é uma tentaçãoencaixar a novapeça <strong>do</strong> puzzle nasjá existentes (este éo 22.º romance <strong>de</strong>António LoboAntunes). Outrastentaçõesinterpretativas provocadas pelo novolivro <strong>do</strong> escritor (Lisboa, 1942): otítulo camoniano, <strong>que</strong> cita o primeiroverso <strong>de</strong> “Babel e Sião” (esse mesmoem <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> é “bem compara<strong>do</strong>,Babilóniaao mal presente, Sião ao tempopassa<strong>do</strong>”); e a autoreferencialida<strong>de</strong> (apersonagem principal é um “Sr.Antunes”, <strong>que</strong> em criança tratavampor “Antoninho” e <strong>que</strong> no ano <strong>de</strong>2007 foi opera<strong>do</strong> a um cancro nointestino).Deixemos <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a literaturacomparada e as ligaçõesautobiográficas e concentremo-nosnas menos <strong>de</strong> 200 páginas <strong>de</strong>“Sôbolos Rios <strong>que</strong> Vão”. No <strong>que</strong> aotítulo tulo diz respeito, há alusõessuficientes no interior <strong>do</strong> texto.Comoesta: “Dei por mim sobreosrios <strong>do</strong> Mon<strong>de</strong>go <strong>que</strong>sem cessar se dividiam etornavam am a unir, <strong>de</strong>ipor mim m <strong>que</strong> falecihá tantos anos ounão eu, tu<strong>do</strong> aquilo<strong>que</strong> era e nãoexiste mais, aflutuar sobre aáguapara longe<strong>de</strong> vocês.” Ouesta: “O cabeloda MariaLucinda aA maior fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lobo Antunes consiste em sacrificara construção das cenas à montagem <strong>de</strong> frases dispersase imagens fragmentadasO romance “Fanny Owen”, <strong>que</strong>AgustinaBessa-Luís publicouem 1979, vai ser li<strong>do</strong> hojeem voz alta, da primeiraà última página, na CasaFernan<strong>do</strong> Pessoa. A leituraintegral <strong>do</strong> livro começa às11h, e a entrada é gratuita.confundir-se com o seu e ele<strong>de</strong>slizan<strong>do</strong> sobre os rios a fazer partedas ondas.” Ou ainda esta: “Trêsquilos e duzentas <strong>que</strong> embrulhavamem linho e ele a ir sobre os rios nosenti<strong>do</strong> da foz”.Neste livro, <strong>que</strong> arranca noprimeiro dia <strong>de</strong> Primavera, metáforae enre<strong>do</strong> são um só: o fio <strong>de</strong> vida <strong>que</strong>vai da nascente à foz. É a fantasia <strong>de</strong>morte <strong>de</strong> alguém <strong>que</strong> per<strong>de</strong> ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> antes <strong>de</strong> ter chega<strong>do</strong> aperceber <strong>que</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> era essa; éa visão em arco <strong>de</strong> um velho comcancro no intestino a estudar aslinhas da vida “nos ecrãs” e a fazer“zapping” com a memória. “SôbolosRios <strong>que</strong> Vão” salta <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> parao presente e <strong>de</strong>pois outra vez para opassa<strong>do</strong>, em círculos fecha<strong>do</strong>s, comas suas repetições, recapitulações erememorações (o pai <strong>que</strong> pergunta“Sabes?”, mas <strong>que</strong> não toca no filho;o ouriço <strong>que</strong> se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> <strong>de</strong> umcastanheiro para se instalar nastripas em forma <strong>de</strong> cancro; o tio <strong>que</strong>não se julga homem <strong>que</strong> cheguepara viver nem tem coragem para sematar; a criança <strong>que</strong> pe<strong>de</strong> “pão,pão” à janela <strong>de</strong> crianças ricas <strong>que</strong>sonham com a fome <strong>de</strong>la; “o pingono sapato” <strong>que</strong> vem a revelar-se ummédico; o rabo <strong>do</strong> gato escuta<strong>do</strong>pela avó na escuridão; etc).Dor e memória, <strong>do</strong>ença erecordações negam a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> inexistência <strong>que</strong> uma voz noromance parece sugerir. O problemaé quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r se escapa, e opaciente a busca para se reconhecer,ou é persegui<strong>do</strong> por ela, para seri<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>: “Da<strong>do</strong> <strong>que</strong> nenhumaintimida<strong>de</strong> entre eles, avaliavam-se,rondavam-se, não secumprimentavam”. Tu<strong>do</strong> existe, atéo <strong>que</strong> é inútil, como o nome <strong>de</strong>alguém es<strong>que</strong>ci<strong>do</strong>: “A tralha <strong>que</strong>arrastamos Santo Cristo, o <strong>que</strong> façocom o Ama<strong>de</strong>u das Neves Pacheco,expulso-o ou permito <strong>que</strong> semantenha submerso juntamente comoutros nomes e outros sucessosantigos.”Com a sua já familiar técnica <strong>de</strong>falsas concordâncias, duas orações<strong>que</strong> alu<strong>de</strong>m a tempos e temasdiferentes a criarem uma terceiraunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, o sr. Antunesmaneja a to<strong>do</strong> o gás a máquina <strong>de</strong>emaranhar paisagens da sua escrita(cenários principais: uma cama <strong>de</strong>hospital, no presente; e asimediações <strong>do</strong> Mon<strong>de</strong>go e das minas<strong>de</strong> volfrâmio, durante e <strong>de</strong>pois daSegunda Guerra Mundial). Primeiroexemplo: “Uma maca a <strong>de</strong>slizarperto <strong>de</strong>le e mais ninguém senão oafina<strong>do</strong>r [<strong>de</strong> harpas] emendan<strong>do</strong>uma última cavilha no seu peito”;segun<strong>do</strong> exemplo: “Eu no centro dacama on<strong>de</strong> os enfermeiros mepuseram à espera <strong>que</strong> me to<strong>que</strong>s etu na pontinha <strong>do</strong> colchãoesperan<strong>do</strong> <strong>que</strong> eu não te to<strong>que</strong> e nãoto<strong>que</strong>i a fim <strong>de</strong> não ser expulso porum cotovelo maça<strong>do</strong>”; terceiroexemplo: “a minha avó nas bancadas<strong>do</strong>s ourives e eu satisfeito por opassa<strong>do</strong> continuar a existir salvan<strong>do</strong>meda ravina à beira <strong>do</strong> colchão”.O Sr. Antunes prodigaliza nestelivro uma arte <strong>que</strong> <strong>do</strong>mina commaestria: escrever nas entrelinhas.Desporto favorito <strong>de</strong> muitos leitores<strong>que</strong> fizeram a transição da ditadurapara a <strong>de</strong>mocracia, é um jogo <strong>que</strong>teve cultores por altura das canções<strong>de</strong> protesto e <strong>que</strong> ainda sobrevive nascanções brejeiras. Reparem como oSr. Antunes disfarça uma cena <strong>de</strong> sexooral (entre a viúva <strong>de</strong> um major e opai <strong>de</strong> Antoninho) através <strong>do</strong> acto <strong>de</strong>comer um salmonete fresco: “Maisperfeita <strong>que</strong> a avó a dividir osalmonete ao meio e a juntar a pele ea cabeça <strong>que</strong> o impressionavam numprato mais pe<strong>que</strong>no - Po<strong>de</strong>s comeragora enquanto o avô perseguia asespinhas com a língua, to<strong>do</strong> ele àprocura entre a gengiva e a bochecha,encontrava a aresta, perdia-a, voltavaa encontrá-la, empurrava-a comprecaução ao longo <strong>de</strong> um funil <strong>de</strong>lábios, apanhava-a com <strong>do</strong>is <strong>de</strong><strong>do</strong>s,esfregava-os um no outro para selibertar <strong>de</strong>la, secava-os no guardanapoe recomeçava a pesquisa”.“Sôbolos Rios <strong>que</strong> Vão” é escritonum português <strong>que</strong> pesca à linha umvocabulário <strong>de</strong>licioso (em locuçõespopulares como “mete-se-lhes umacisma no raciocínio e não a largammais atazanan<strong>do</strong> os vivos”), assimcomo frases <strong>que</strong> fizeram uma época(“bochecha <strong>de</strong> menino me <strong>de</strong>u vida”,diz o balão <strong>que</strong> ao encher revela afrase “Armazéns Victória Tu<strong>do</strong> Para AMulher Mo<strong>de</strong>rna”). Mas a narrativa, acaracterização <strong>de</strong> personagens, aprópria i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> personagem, e jáagora a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> narrativa, fazemfraca figura no livro <strong>do</strong> Sr. Antunes.Dele po<strong>de</strong>mos dizer o <strong>que</strong> Nabokovdizia <strong>de</strong> Flaubert, <strong>que</strong> escreve umromance como <strong>de</strong>via escrever-sepoesia, com a diferença <strong>de</strong> <strong>que</strong> o seu“Sôbolos Rios” é um romance <strong>de</strong>ossos parti<strong>do</strong>s.A maior fragilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sr. Antunesresi<strong>de</strong> em sacrificar a construção dascenas, ou <strong>do</strong>s episódios, à montagem<strong>de</strong> frases dispersas e imagensfragmentadas. O livro está repassa<strong>do</strong><strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s momentos <strong>de</strong> literatura eos seus efeitos dramáticos chegam aser comoventes. Mas esses efeitos,<strong>que</strong> resultam <strong>de</strong> uma técnica <strong>de</strong>escrita <strong>que</strong> articula processosmentais <strong>de</strong> associação, dinamitamqual<strong>que</strong>r chance <strong>de</strong> o livro ergueroutra coisa <strong>que</strong> não seja a catástrofe<strong>do</strong> cenário, da acção e daspersonagens.Este não é bem um livro “sobre” avelhice nem sobre os prenúncios ousintomas <strong>de</strong> morte; encarna antes avelhice e a morte numa sucessão <strong>de</strong><strong>de</strong>smoronamentos, com a memóriano papel <strong>do</strong> paramédico muni<strong>do</strong> <strong>de</strong>um <strong>de</strong>sfibrila<strong>do</strong>r. As amigas senis damãe <strong>do</strong> Sr. Antunes, Júlia, Alda eClotil<strong>de</strong> (três nomes lin<strong>do</strong>s, mas <strong>que</strong>já não se usam) dizem frase como“Vejo um niquinho”, ou “Estivecasada com <strong>que</strong>m?”, e per<strong>de</strong>m-se na“angústia <strong>de</strong> buscar soleiras nocérebro sem as achar”. Quanto aMaria Otília (outro nome fora <strong>de</strong>moda), <strong>que</strong> “perseguia cabelosbrancos no espelho afastan<strong>do</strong>ma<strong>de</strong>ixas” enquanto prometia a simesma “Nunca serei velha”, essapaixão <strong>do</strong> Sr. Antunes <strong>que</strong> ameaçava<strong>de</strong>ixá-lo sozinho na cama se ele nãoparasse <strong>de</strong> tocar-lhe, impedin<strong>do</strong>-a <strong>de</strong><strong>do</strong>rmir, faz agora um tratamento com“as ampolas <strong>de</strong> beber da úlcera” e “o<strong>que</strong> cura a úlcera não é engoliraquilo, é cortar as duas pontas nolugar marca<strong>do</strong> a azul com umaserrinha <strong>que</strong> se <strong>de</strong>scobre entre osvincos das instruções ou escondidana embalagem, eis a pe<strong>que</strong>narecompensa da ida<strong>de</strong>, abrir ampolase assistir a uma mancha amarela num<strong>de</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> água mexi<strong>do</strong> não com acolher, com o cabo da faca”.Se temos <strong>de</strong> aceitar <strong>que</strong> nasimagens está o olhar <strong>do</strong> autor,também não é menos verda<strong>de</strong> <strong>que</strong> naestrutura <strong>do</strong> texto nos <strong>de</strong>paramoscom a sua visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Para além<strong>do</strong> espaço-tempo polariza<strong>do</strong> pelainfância a brotar <strong>de</strong> sensaçõesconfusas e da velhice repleta <strong>de</strong>memórias dispersas, po<strong>de</strong> dizer-se<strong>que</strong> o Sr. Antunes entrega qual<strong>que</strong>routra possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m aoscaprichos da visão poética. Quan<strong>do</strong>esta se <strong>de</strong>sorienta, só restamconfusão ou afectações <strong>de</strong> estilo <strong>de</strong>um escritor mimalho. Felizmente, oSr. Antunes ainda se lembra <strong>do</strong>smimos mais antigos: “Ele ao colo damãe <strong>de</strong> bochecha entre as rendas,ora à superfície ora protegi<strong>do</strong> por umcasulo no qual se lhe fosseconsenti<strong>do</strong> moraria eternamente”.O Sr. Antunes oferece-nos nestelivro muito belo e muito<strong>de</strong>sequilibra<strong>do</strong> uma experiência <strong>do</strong>êxtase em <strong>que</strong> pavor e <strong>de</strong>scoberta seconfun<strong>de</strong>m. Morte e vida e velhice esofrimento po<strong>de</strong>m ser muitas coisas,não são é <strong>de</strong>soladas, nem tão poucovazias.A <strong>de</strong>sorganizadarealida<strong>de</strong>William Boyd reflecte sobretemas dickensianos numromance <strong>que</strong> capta bemcertos aspectos <strong>do</strong> “zeitgeist”<strong>do</strong> século <strong>XX</strong>I. HelenaVasconcelosTempesta<strong>de</strong>William BoydCasa das Letras(Trad. Dina Antunes)mmmmnEm 1998, William Boydpublicou um pe<strong>que</strong>no livro noqual revelava ao mun<strong>do</strong> a36 • Sexta-feira 15 Outubro 2010 • Ípsilon

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