A comédia <strong>de</strong> um homem sóDurante a II Guerra, Brecht viveu no exílio na Finlândia e escreveu “O Senhor Puntila e o seuCria<strong>do</strong> Matti”. Miguel Guilherme é o patrão, <strong>que</strong> não é boa pessoa sem a bebida e não po<strong>de</strong>viver sem o emprega<strong>do</strong>. A peça estreia hoje no Teatro Aberto. Ana Dias Cor<strong>de</strong>iroAmbiente <strong>de</strong> fumo, voz embargadapelo álcool em canções com piano emfun<strong>do</strong>. E por<strong>que</strong> não? Por outras palavras,“ambiente Tom Waits”. Masenvolto na bruma contida nas paisagensda Finlândia. Era isso <strong>que</strong> o encena<strong>do</strong>rJoão Lourenço tinha emmente quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>cidiu recriar a comédiaescrita por Bertolt Brecht em1940 durante o seu exílio na Finlândia.“O Senhor Puntila e o seu Cria<strong>do</strong>Matti”, com dramaturgia <strong>de</strong> Vera SanPayo <strong>de</strong> Lemos, estreia hoje no TeatroAberto em Lisboa.Neste clima <strong>de</strong> suave nostalgia, em<strong>que</strong> texto e música alternam, nas duashoras <strong>de</strong> espectáculo, com 15 actorese 3 músicos em palco, o actor MiguelGuilherme veste a pele <strong>do</strong> senhorPuntila, um rico proprietário <strong>que</strong> nãoabdica <strong>de</strong> uma boa aguar<strong>de</strong>nte para“pensar <strong>de</strong> forma fria rigorosa e bêbeda”.A peça é quase um musical.Uma comédia, sim, mas carregada <strong>de</strong>melancolia.Quan<strong>do</strong> está ébrio, Puntila é umhomem compreensivo, espirituoso ebom. Sóbrio, muda para uma pessoaegoísta, insultuosa e má. No fim, sóbrioou ébrio, <strong>de</strong>scobre <strong>que</strong> é umapessoa só.Mergulha<strong>do</strong> no drama <strong>de</strong> uma duplapersonalida<strong>de</strong> <strong>que</strong> remete vagamentepara “O Estranho Caso <strong>do</strong> Dr.Jekyll e o Sr. Hy<strong>de</strong>”, Miguel Guilhermeoscila entre um e outro. E esse “andar<strong>de</strong> um la<strong>do</strong> para o outro” era uma dascoisas <strong>que</strong> João Lourenço <strong>que</strong>ria paraa sua recriação <strong>do</strong> senhor Puntila,inspira<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma comédia da escritoraHella Wuolijoki (1886-1954) com<strong>que</strong>m Brecht trabalhou na Finlândia,incluin<strong>do</strong> nesta peça.“Não <strong>que</strong>ria uma personagem comuma divisão muito a preto e branco.O drama <strong>de</strong>le é ser bipolar, é o dramada personagem <strong>que</strong> sabe <strong>que</strong> o <strong>que</strong>faz é o contrário daquilo <strong>que</strong> <strong>que</strong>rquan<strong>do</strong> está sóbrio”, diz João Lourençoao Ípsilon no final <strong>do</strong> primeiro ensaiocom público antes da estreia.Na valsa <strong>de</strong> diálogos e <strong>de</strong> encontros,Nesta parábola<strong>do</strong> capitalismo <strong>que</strong>,segun<strong>do</strong> JoãoLourenço serve parailustrar os temposdifíceis <strong>que</strong> vivemoshoje, “estão todasas relações entreclasses, entre patrãoe emprega<strong>do</strong>e os problemasda falta <strong>de</strong> emprego”Teatroas personagens são <strong>que</strong>m afinal melhorrevela como Puntila realmenteé: o cria<strong>do</strong> Matti (Sérgio Praia) <strong>que</strong> oconhece melhor <strong>do</strong> <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r outroemprega<strong>do</strong>, o juiz (Rui Morisson)e o pastor (Francisco Pestana) <strong>que</strong> ochamam à razão, e as noivas (PatríciaAndré, Mafalda Luís <strong>de</strong> Castro e SaraCipriano) <strong>que</strong> o senhor Puntila, numacesso <strong>de</strong> bon<strong>do</strong>sa euforia, convocapara a festa <strong>de</strong> noiva<strong>do</strong> da filha Eva(Sofia <strong>de</strong> Portugal) com o ridículo diplomata(Cristóvão Campos).Como os patrões <strong>que</strong> não po<strong>de</strong>mexistir e as fábricas <strong>que</strong> não po<strong>de</strong>mfuncionar, sem os seus emprega<strong>do</strong>stambém o senhor Puntila não po<strong>de</strong>viver sem o seu cria<strong>do</strong> Matti.Mas este po<strong>de</strong> viver sem o patrão.E, num papel <strong>de</strong>spoja<strong>do</strong> <strong>de</strong> emoções,tanto o ampara em momentos <strong>de</strong> excessocomo tenta compreendê-lo nosraros “ata<strong>que</strong>s <strong>de</strong> sobrieda<strong>de</strong>”. Tambémse afeiçoa a ele e gosta da filha,Eva, com <strong>que</strong>m casaria se um e outronão fizessem parte <strong>de</strong> <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>stotalmente opostos, <strong>que</strong> não se misturam.Nesta parábola <strong>do</strong> capitalismo <strong>que</strong>,segun<strong>do</strong> João Lourenço serve parailustrar os tempos difíceis <strong>que</strong> vivemoshoje, “estão to- das as relaçõesentre classes, entre patrão e emprega<strong>do</strong>e os problemas da falta <strong>de</strong> emprego”.Nessa relações <strong>de</strong>siguais, estátambém a dignida<strong>de</strong> <strong>que</strong> o cria<strong>do</strong>Matti mantém intacta, e <strong>que</strong> as noivas,apesar <strong>de</strong> rejeitadas, personificamnas histórias <strong>que</strong> contam ao público,em breves monólogos <strong>que</strong> revelam atragédia <strong>de</strong>ntro da comédia.Coisas inesperadasMiguel Guilherme era, para João Lourenço,um senhor Puntila óbvio. “Paraeste tragicómico, pensei <strong>que</strong> o Miguel[Guilherme] seria a melhor pessoa.Esta personagem tem <strong>que</strong> ter umaleveza na representação <strong>que</strong> ele tem,uma improvisação <strong>que</strong> ele dá no seupróprio trabalho. Durante a representação,ele tem <strong>que</strong> estar sempre muitosolto. Tanto po<strong>de</strong> estar ira<strong>do</strong> quan<strong>do</strong>está sério, como fazer coisas inesperadasquan<strong>do</strong> está ébrio.”Esta peça é conhecida como “a comédia<strong>de</strong> Brecht”, uma comédia comuma mensagem e um cunho socialfortes. Para o cenário, <strong>que</strong> assina comAntónio Casimiro, João Lorenço imaginoualgo muito simples: um cenáriobase <strong>que</strong> se abre e recolhe consoantea cena. E, <strong>que</strong> no fim, dá espaço auma montanha imaginária, tambémela <strong>de</strong>spojada, para <strong>de</strong>ixar um senhorPuntila se <strong>de</strong>scobrir no remorso e nasolidão enquanto <strong>de</strong>screve a naturezae as suas ma<strong>de</strong>iras, a sua ri<strong>que</strong>za,transportadas rio abaixo.Ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> palco, um cicloramaa passar imagens da Finlândia e ví<strong>de</strong>oem directo q.b, segun<strong>do</strong> o encena<strong>do</strong>r<strong>que</strong> tem fre<strong>que</strong>ntemente usa<strong>do</strong> umalinguagem multimédia nas suas últimaspeças.Para recriar o ambiente musicalevocativo, mesmo <strong>que</strong> vagamente, <strong>de</strong>Tom Waits para esta comédia <strong>de</strong> Brecht,o encena<strong>do</strong>r procurou e encontrou(Shahryar) Mazgani (<strong>que</strong> nasceuno Irão mas cresceu em Portugal).Nas suas pesquisas, viu <strong>que</strong> Mazganitinha ganho um prémio num concursoem <strong>que</strong> Tom Waits era júri, gostouda música e convi<strong>do</strong>u-o para compora música da peça, a <strong>que</strong>m sugeriu<strong>que</strong>, a esse ambiente <strong>de</strong> álcool e fumo,juntasse canções <strong>de</strong> tango <strong>que</strong> os finlan<strong>de</strong>sestêm como canção nacional.Os ritmos <strong>que</strong> inva<strong>de</strong>m este espectáculonada têm a ver com a músicaoriginal da peça <strong>do</strong> compositor alemãoPaulo Dessau (1894-1979) <strong>que</strong>apenas entra aqui com uma canção<strong>que</strong> Brecht introduziu num filme <strong>que</strong>ro<strong>do</strong>u. Imagens <strong>de</strong>sse filme a pretoe branco, <strong>de</strong> um casal <strong>que</strong> passeiapela floresta, são projectadas emecrãs em fun<strong>do</strong> <strong>de</strong> palco. “É uma citação”,diz João Lourenço. “Uma homenagemao filme e uma forma <strong>de</strong>termos o Brecht aqui connosco.”Neste jogo <strong>de</strong> relações<strong>de</strong>siguais, o cria<strong>do</strong>Matti mantém intactaa dignida<strong>de</strong> <strong>que</strong> asnoivas personificam30 • Sexta-feira 15 Outubro 2010 • Ípsilon
Daniel Martinhoconta as horasaté ao Dia DÉ o jovem compositor resi<strong>de</strong>nte da Casa da Música e, em seis meses, compôs três peças <strong>que</strong> sãoa sua própria vida. A primeira, “Antologia <strong>do</strong> Tempo I - Génese”, tem estreia na terça-feira. Aseguir, Daniel Martinho <strong>que</strong>r fazer música para cinema, teatro e vi<strong>de</strong>ojogos. Sara Dias OliveiraMúsicaPAULO PIMENTASão as suas primeiras obras feitas porencomenda e está lá tu<strong>do</strong>: a maneira<strong>de</strong> pensar, <strong>de</strong> compor, <strong>de</strong> se movimentarna hora <strong>de</strong> encaixar cada notanas cinco linhas da pauta. DanielMartinho tem 24 anos e é o jovemcompositor resi<strong>de</strong>nte da Casa da Música.Em meio ano, criou três peças<strong>que</strong> funcionam como um espelho dasua própria vida. A primeira, “Antologia<strong>do</strong> Tempo I - Génese”, tem estreiana próxima terça-feira, na Sala2 da Casa da Música; as seguintesapresentam-se, respectivamente, a23 <strong>de</strong> Outubro e a 20 <strong>de</strong> Novembro.Nervoso? “Vai correr tu<strong>do</strong> bem”, diz,à confiança.As circunstâncias da encomendaacabaram por entrar no processocriativo. O número <strong>de</strong> instrumentistasaumenta da primeira à terceirapeça e esse factor não foi alheio aossons <strong>que</strong> foi colocan<strong>do</strong> no papel e nocomputa<strong>do</strong>r: “A criação <strong>de</strong>stas peçasestá relacionada com o meu próprio<strong>de</strong>senvolvimento enquanto compositor.É uma analogia com a minhaprópria vida”, explica Daniel Martinho.Começa sempre por ter “uma“A criação <strong>de</strong>staspeças estárelacionada como meu próprio<strong>de</strong>senvolvimentoenquanto compositor.É uma analogia com aminha própria vida”Daniel Martinhoimagem geral” <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>que</strong>r fazer, mas<strong>de</strong>pois procura até “ter muita certeza”sobre a maneira <strong>de</strong> começar. “Antologia<strong>do</strong> Tempo I - Génese”, <strong>que</strong>será interpretada pelo quarteto <strong>de</strong>cordas <strong>que</strong> ganhou o Prémio JovensMúsicos no ano passa<strong>do</strong>, é precisamenteacerca <strong>de</strong>ssa busca: “Há aquia procura <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> algoconcreto”. A peça é propositadamenteconfusa: o material é disperso e osfragmentos são <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s nasduas obras seguintes, como num“work in progress”. “Antologia <strong>do</strong>Tempo II - Ritual” tem outra liberda<strong>de</strong>:Daniel Martinho permite <strong>que</strong> osmúsicos (no caso, os músicos <strong>do</strong> RemixEnsemble) se distanciem da pautae façam os seus <strong>de</strong>svios. “Tem partesum pouco cruas e por isso peçoaos intérpretes para improvisarem”,justifica. A tensão aumenta na últimaparte da trilogia, “Antologia <strong>do</strong> Tempo III - Apogeu”, em <strong>que</strong> os fragmentosencontram finalmente umsenti<strong>do</strong>. Vai ser a Or<strong>que</strong>stra Sinfónica<strong>do</strong> Porto Casa da Música a estreá-la,a 20 <strong>de</strong> Novembro.Os ensaios já começaram e as composições<strong>de</strong> Daniel Martinho começama ganhar vida própria. É umaenorme responsabilida<strong>de</strong>, mas ocompositor está satisfeito com o trabalho<strong>de</strong> seis meses: “Gosto <strong>do</strong> <strong>que</strong>fiz e espero <strong>que</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>que</strong> tenho sereflicta na execução <strong>do</strong>s músicos”.No Dia D, vai vê-los da primeira fila,mas estará atento ao <strong>que</strong> se vai passaratrás das suas costas: está ansioso porsaber como é <strong>que</strong> o público da Casada Música reage ao seu jovem compositorresi<strong>de</strong>nte.Cinema, teatro e vi<strong>de</strong>ojogosAs portas da Casa da Música abriramsepara Daniel Martinho <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> eleter <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> concorrer ao concurso<strong>de</strong> composição. Não ganhou, mas ojúri ficou impressiona<strong>do</strong> com o portfoliorechea<strong>do</strong> <strong>de</strong> composições paraor<strong>que</strong>stra, piano, electrónica em temporeal, e por aí fora. Chamaram-nopara uma reunião, e Daniel Martinhosaiu <strong>de</strong> lá com o estatuto <strong>de</strong> compositorresi<strong>de</strong>nte da Casa da Música.Martinho tem planos para o futuro:<strong>que</strong>r escrever música para cinema,teatro e vi<strong>de</strong>ojogos. Gosta <strong>de</strong> Debussye <strong>de</strong> Stravinsky, e, na actualida<strong>de</strong>,<strong>do</strong> compositor e pianista finlandêsMagnus Lindberg.O seu percurso musical não começoumuito ce<strong>do</strong>. Com 14 anos, tocavaguitarra eléctrica sem qual<strong>que</strong>r formaçãona área e já dava uns to<strong>que</strong>sno piano para compor. Aos 17, entrouna Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Espinho,on<strong>de</strong> esteve três anos. Foi no secundário<strong>que</strong> ficou fascina<strong>do</strong> com a história<strong>do</strong>s movimentos artísticos contemporâneose <strong>que</strong> achou <strong>que</strong> essasteorias podiam ter reflexos na música.Chegou a entrar em Design naUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro, mas <strong>de</strong>pressaenten<strong>de</strong>u <strong>que</strong> teria <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong>caminho. Em 2006, entrou no curso<strong>de</strong> Composição da Escola Superior<strong>de</strong> Música e das Artes <strong>do</strong> Espectáculo(ESMAE) no Porto, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saiucom uma média <strong>de</strong> 17 valores. Nestemomento, fre<strong>que</strong>nta o primeiro ano<strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> em Composição e TeoriaMusical na ESMAE e dá aulas <strong>de</strong> Análisee Técnicas <strong>de</strong> Composição emViana <strong>do</strong> Castelo.Já tem currículo como compositor:este ano, criou “Despertar” para aSinfonieta da ESMAE, <strong>que</strong> estreou noTeatro Helena Sá e Costa. No mesmosítio, e também este ano, estreou também“Ultimatum Futurista”, a partir<strong>de</strong> Almada Negreiros, <strong>que</strong> foi executadapelo Ensemble I&D. No ano passa<strong>do</strong>criou um concerto para contrabaixopara ser li<strong>do</strong> pelo Remix Ensemblena Casa da Música.A cabeça <strong>de</strong> Daniel Martinho nãopára. Quer continuar a escrever música,no papel e no computa<strong>do</strong>r. Éessa a sua vida.DanielMartinho temapenas 24anos mas oseu currículocomocompositorimpressionoua Casa daMúsicaVer agenda <strong>de</strong> concertos págs. 38 e segs.Ípsilon • Sexta-feira 15 Outubro 2010 • 31