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O que fizemos à memória do século XX? - Fonoteca Municipal de ...

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A natureza e a paisagemtornaram-se o objecto central<strong>do</strong> percurso <strong>de</strong> João Queiroz apartir <strong>de</strong> uma residênciaartística no Feital, Beira AltaUm território por explorar“Silvae” indicia os sinais inaugurais<strong>de</strong>sse gran<strong>de</strong> tema logo na primeiragaleria, on<strong>de</strong> corre uma narrativa cronológicacomposta por obras produzidasentre 1992 e 1996. São exercícios,investigações livres, realiza<strong>do</strong>s porJoão Queiroz quan<strong>do</strong> ensinava Desenhoe Pintura na Ar.Co - como os <strong>de</strong>senhosfeitos com um capacete ou àfrente <strong>de</strong> uma televisão. “Os motivos<strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> experimentação estãorelaciona<strong>do</strong>s com a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> pensar o exercício <strong>do</strong> <strong>de</strong>senho, fazen<strong>do</strong>movimentar a percepção, aimaginação, o corpo”, revela. “Comoé <strong>que</strong> a minha maneira <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>rqual<strong>que</strong>r coisa canaliza ou modalizaa minha visão, como é <strong>que</strong> a minhaestrutura corporal também o faz?”Fundamental neste <strong>que</strong>stionamento,o <strong>de</strong>senho estabelece, num senti<strong>do</strong>lato e prático, uma relação directacom a interpretação visual da naturezae <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. “A memória tambémé importante, mas no fun<strong>do</strong> é com ele<strong>que</strong> registamos a agregação <strong>do</strong> <strong>que</strong>estamos a fazer. Numa multiplicida<strong>de</strong><strong>de</strong> actos <strong>que</strong> temos à nossa frente, o<strong>de</strong>senho é um processo <strong>de</strong> escolha”.Que antece<strong>de</strong> a pintura? “Sim. Nãovou fazer a pintura da<strong>que</strong>le ou <strong>do</strong>utro<strong>de</strong>senho, mas os <strong>de</strong>senhos <strong>que</strong> acumuleiservem muitas vezes <strong>de</strong> base aotipo <strong>de</strong> relações <strong>que</strong> <strong>de</strong>pois se vão estabelecerna pintura com a cor, a luz,a pincelada”. Exemplar <strong>de</strong>ste méto<strong>do</strong>(<strong>que</strong>, sublinhe-se, não tem um carácterprescritivo), a série “O Ecrã noPeito”, <strong>de</strong> 1999, organiza-se como um<strong>do</strong>s léxicos a <strong>que</strong> o artista recorre nasua pintura <strong>de</strong> atelier: paisagens e pormenores<strong>de</strong> paisagens, arbustos, caminhos,ervas, <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>s com ocarvão <strong>de</strong> pauzinhos <strong>que</strong>ima<strong>do</strong>s numalareira na Beira Alta.O momento em <strong>que</strong> paisagem e anatureza se abriram como territórios<strong>de</strong> exploração aconteceu em 1997 duranteuma residência artística, <strong>de</strong>dicadaao <strong>de</strong>senho, no Feital, Beira Alta.“Tu<strong>do</strong> aquilo <strong>que</strong> vinha a fazer antes,<strong>que</strong> começara a apren<strong>de</strong>r e a <strong>de</strong>senvolver,começou a permitir-me ter instrumentospara criar uma relação naturalcom o <strong>que</strong> pensava e via. Foi umapassagem”. Para trás ficava o peso conceptual<strong>do</strong>s exercícios, a ênfase noprocesso, embora já nessa altura nuncaestivesse em causa – tal como hoje– o efeito sobre o especta<strong>do</strong>r. Reparesenas pinturas <strong>de</strong> cores e superfícies<strong>de</strong> cera dura datadas <strong>de</strong> 1994, <strong>que</strong> convidamao tacto, ao to<strong>que</strong> da mão. Têmuma espessura <strong>que</strong> lembra a da pele.E o corpo? On<strong>de</strong> fica o corpo? “A pintura,com os materiais da tela, acrescentauma dimensão háptica ao acto“Certa pinturaoferece umaaproximaçãoà imagem maiscomprometida como corpo. Po<strong>de</strong> (...)permitir retomaro gosto pelo acto<strong>de</strong> ver”João Queiroz<strong>de</strong> olhar”, respon<strong>de</strong> João Queiroz. “Colocamosos olhos <strong>de</strong> maneira diferenteao aproximarmo-nos e afastarmonos.A pintura e o <strong>de</strong>senho dão muitoespaço a essa experimentação. To<strong>do</strong>o corpo vê, os olhos não são mais <strong>do</strong><strong>que</strong> uma parte especializada”.A natureza é outro corpoTo<strong>do</strong> o corpo vê em “Silvae”, <strong>que</strong> pertoda segunda galeria se baralha cronologicamente,transforman<strong>do</strong>-senum emaranha<strong>do</strong> <strong>de</strong> sensações, impressõese percepções em <strong>que</strong> o pe<strong>que</strong>no(ervas, vegetação) confronta ogran<strong>de</strong> (o céu, um arvore<strong>do</strong>). Algumasobras reúnem-se pela primeira vez e<strong>de</strong>scobrem-se salas invernais, zonasiluminadas, folhagens ameaça<strong>do</strong>ras.Desenhos <strong>de</strong>lica<strong>do</strong>s, luz, negrume.Cores <strong>que</strong>ntes, formas feitas com ma<strong>de</strong>ira<strong>que</strong>imada ou a sanguínea. E aabstracção? Devemos falar <strong>de</strong>la? “Hámomentos ou formas <strong>que</strong> estão mais<strong>de</strong>pura<strong>do</strong>s ou simplifica<strong>do</strong>s, mas nuncahá um movimento à Mondrian. Nãovai por aí. Já foi feito e muito bem”.Em certas pinturas, porém, a paisagemestá apenas subentendida numrelação <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>s e mo<strong>de</strong>los.“Quan<strong>do</strong> isso se verifica, pre<strong>do</strong>minaa relação com a pintura, a cor e a matéria.Mas quan<strong>do</strong> está menos subentendida,<strong>de</strong>svia-se da materialida<strong>de</strong>.Eu gosto <strong>de</strong> trabalhar entre esses espaços:nem é a representação completa,nem é a abstracção completa”.O fazer e o interpretar da representaçãoprovoca uma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m dasformas e das cores <strong>que</strong> agrada ao artista:“Quan<strong>do</strong> há uma or<strong>de</strong>m, háuma hierarquização. Acho muito interessanteeste exercício <strong>de</strong>, no olhar,<strong>de</strong>sierarquizar, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nar as coisas.O <strong>que</strong> é pe<strong>que</strong>no, o <strong>que</strong> é uma vibraçãopo<strong>de</strong> constituir-se como a coisamais importante, singular. A coisamais or<strong>de</strong>nada <strong>que</strong> há é a arte naïf. Étu<strong>do</strong> nome e números, uma <strong>de</strong>scriçãocom uma gramática muito simples.Nela sei o <strong>que</strong> é o adjectivo, o substantivo,o <strong>que</strong> é verbo. Na minha nãosei, toda a or<strong>de</strong>m gramatical per<strong>de</strong>-seum boca<strong>do</strong>”.A figura humana, e com ela um conjunto<strong>de</strong> <strong>que</strong>stões (psicológicas, sociológicas,antropológicas), está ausentedas telas <strong>de</strong> João Queiroz. Restam apenaso corpo <strong>do</strong> próprio artista e o <strong>do</strong>especta<strong>do</strong>r diante da pintura e <strong>do</strong> <strong>de</strong>senho.O outro, a existir é a natureza.“A partir <strong>de</strong>ssa noção <strong>do</strong> corpo, sentimos<strong>que</strong> partilhamos alguma coisacom a natureza, <strong>que</strong> há algo <strong>de</strong> imanente.Que fazemos parte da mesmamatéria. Ao mesmo tempo ela dá-nosuma certa noção <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>. Issotambém acontece com as pessoas.Sentimos <strong>que</strong> têm a ver connosco, massentimos <strong>que</strong> são o outro”.Há telas pe<strong>que</strong>nas, outras com escalasmaiores <strong>que</strong> permitem <strong>que</strong> o corpová <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> ao outro. E pressentemsedinâmicas diferentes <strong>do</strong> gesto, àsquais correspon<strong>de</strong>m olhares e aproximaçõesdiferentes. “Silvae” é uma exposição<strong>de</strong> pintura e <strong>de</strong>senho no século<strong>XX</strong>I. O <strong>que</strong> po<strong>de</strong> ela dizer a um mun<strong>do</strong>abati<strong>do</strong> sob imagens, ecrãs, pixéis?O <strong>que</strong> lhe po<strong>de</strong> oferecer? João Queirozsorri entusiasma<strong>do</strong> e respon<strong>de</strong>: “Certapintura oferece uma aproximação àimagem mais comprometida com ocorpo. Po<strong>de</strong> enri<strong>que</strong>cer a mundivi<strong>de</strong>nciadas pessoas, permitir-lhes retomaro gosto pelo acto <strong>de</strong> ver”.Ver agenda <strong>de</strong> exposições pág. 46Ípsilon • Sexta-feira 15 Outubro 2010 • 27

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