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O que fizemos à memória do século XX? - Fonoteca Municipal de ...

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certa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção. Até mesmoAdam acaba por amar Rita, o <strong>que</strong> lhedá uma enorme serenida<strong>de</strong>. Existealgo nas pessoas a <strong>que</strong> não se consegueresistir: o po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> afectoe <strong>de</strong> amor, bem como a ânsia <strong>de</strong>reciprocida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses sentimentos.O título <strong>de</strong>ste livro estárelaciona<strong>do</strong> com o facto <strong>de</strong>Adam ser um climatologista.Serve-lhe <strong>de</strong> metáfora parao facto <strong>de</strong> a existência daspessoas – apesar <strong>de</strong> toda a novatecnologia e da ciência – ser tãoimprevisível quanto o tempo?Penso <strong>que</strong> as nossas vidas são regidaspela boa e pela má sorte <strong>que</strong> temos.Adam, <strong>que</strong> parece uma figura quasedivina – um homem <strong>que</strong> produz chuva–, é impotente perante as forças dapouca sorte. Esta i<strong>de</strong>ia da força <strong>do</strong>“<strong>de</strong>stino” está sempre presente nasminhas obras.Adam é um homem bemforma<strong>do</strong>. Exactamente por ser<strong>de</strong>cente, simpático e afável é <strong>que</strong>cai em <strong>de</strong>sgraça. Não existe, nasua obra, qual<strong>que</strong>r “justiça”,seja divina ou <strong>do</strong>s homens?Claro. Os acontecimentos, em “Tempesta<strong>de</strong>”,reflectem essa absoluta indiferença<strong>do</strong> universo, <strong>que</strong>, emborapensemos o contrário, não nos <strong>de</strong>venada. É uma <strong>que</strong>stão <strong>de</strong> lançar os da<strong>do</strong>s,<strong>de</strong> atirar a moeda ao ar. Há poucotempo terminámos as filmagens daadaptação televisiva <strong>de</strong> “Viagem aoFun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Coração”, um romance em<strong>que</strong> está bem patente esta i<strong>de</strong>ia, principalmenteno <strong>que</strong> diz respeito aoprotagonista, Logan Mountstuart, <strong>que</strong>encara tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> lhe acontece comoproduto da boa e da má sorte, o <strong>que</strong>irrita os amigos. Não compreen<strong>de</strong>mcomo é <strong>que</strong> ele po<strong>de</strong> viver com uma“Tenho um passa<strong>do</strong>complica<strong>do</strong> e, quan<strong>do</strong>me perguntam on<strong>de</strong>estão as minhasraízes, não tenhocertezas <strong>de</strong> nada.A minha própriahistória é muito vaga,e talvez seja essaa razão <strong>do</strong> meuinteresse pelas<strong>que</strong>stões dai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>”filosofia tão básica. Mas por<strong>que</strong> não?Fazemos o <strong>que</strong> po<strong>de</strong>mos, mas, no final,o <strong>que</strong> é <strong>que</strong> isso conta?A meio <strong>do</strong> livro, acontece algomuito interessante: o início<strong>do</strong> <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong> gran<strong>de</strong>, rico epo<strong>de</strong>roso Ingram coinci<strong>de</strong> com oprincípio da ascensão <strong>de</strong> Adam.Foi por acaso ou fazia parte <strong>do</strong>seu projecto para a trama?Começo sempre por fazer um plano,sem o qual não trabalho. Por vezeslevo mais tempo a fazer pesquisa e aarquitectar <strong>do</strong> <strong>que</strong> a escrever. No caso<strong>de</strong> Ingram era óbvio para mim <strong>que</strong>o seu <strong>de</strong>clínio começa quan<strong>do</strong> ele seapercebe <strong>que</strong> é totalmente impotenteface à <strong>do</strong>ença.O rio Tamisa surge como umaespécie <strong>de</strong> personagem extraneste romance. Porquê toda estaimportância?Só quan<strong>do</strong> acabei <strong>de</strong> o escrever é <strong>que</strong>me apercebi da importância <strong>do</strong> rio,<strong>que</strong> surge como um ser vivo, mutável,complexo. Sabia <strong>que</strong> o ia usar masnão esperava <strong>que</strong> se tornasse tão omnipresente.O livro começa num ponto<strong>que</strong> é mesmo ao la<strong>do</strong> da minhacasa e observo sempre com espantoas marés <strong>que</strong> criam um <strong>de</strong>snível <strong>de</strong>cinco metros nas águas, tornan<strong>do</strong> asmargens sempre diferentes. É umapresença muito forte.Em “Tempesta<strong>de</strong>”acontecimentos semelhantessão vivi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira diferentepor pessoas diferentes: o <strong>que</strong>é óptimo para alguns po<strong>de</strong>ser terrível para outros. Acha<strong>que</strong> estas contradições criammal-entendi<strong>do</strong>s com gravesrepercussões na vida daspessoas?Sim. Remeto-me para a minha obsessãopor Tchékhov: as suas históriassão muitas vezes sobre pessoas <strong>que</strong><strong>de</strong>veriam acabar juntas, mas <strong>que</strong> sãovítimas <strong>de</strong> algum acontecimento – porvezes algo completamente fútil, idiota– <strong>que</strong> lhes estraga a vida. No nossodia-a-dia vemos amigos e conheci<strong>do</strong>sa soçobrarem e pensamos no <strong>que</strong> é<strong>que</strong> aconteceu para <strong>que</strong> tenham es<strong>que</strong>ci<strong>do</strong>o <strong>que</strong> é fundamental nas suasvidas; também há pessoas <strong>que</strong>acham <strong>que</strong> têm <strong>que</strong> ser necessariamentefelizes mas falham, e falhar éa coisa mais humana <strong>que</strong> existe. Falhamosmesmo quan<strong>do</strong> as oportunida<strong>de</strong>sestão diante <strong>do</strong>s nossos olhos.Tchékhov é muito mo<strong>de</strong>rno por<strong>que</strong>as suas personagens não são idiotasnem irresponsáveis, nem cegas, sãoapenas pessoas.Este livro é um “thriller”, masfoge aos cânones <strong>do</strong> género. Nãoexiste um fim, uma solução.Não se fica a saber o <strong>que</strong> po<strong>de</strong>ráacontecer e o suspense continuapara além da acção.Costumo retirar alguma coisa <strong>do</strong>s romances<strong>de</strong> género – em “Armadillo”,<strong>do</strong>s livros sobre conspirações; em “Inquietu<strong>de</strong>”,<strong>do</strong>s <strong>de</strong> espionagem – e usooscomo uma espécie <strong>de</strong> motor <strong>que</strong>mantém em funcionamento a minha“bela máquina”, a minha narrativa.Acredito <strong>que</strong> o <strong>que</strong> faz com <strong>que</strong> o leitorsinta a necessida<strong>de</strong> irresistível <strong>de</strong> continuara ler é a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber o <strong>que</strong>vai acontecer. Procuro transmitir essaenergia. Às vezes até me aborrece <strong>que</strong>as pessoas digam <strong>que</strong> leram um <strong>do</strong>smeus livros sem parar (risos); é o caso<strong>de</strong> “Tempesta<strong>de</strong>”. Houve críticos <strong>que</strong>disseram <strong>que</strong> este romance era “fácil”,como se isso fosse um <strong>de</strong>feito (risos).Tem afirma<strong>do</strong> <strong>que</strong> evita o“<strong>de</strong>mónio da especificida<strong>de</strong>”e costuma baralhar as pistas,como acontece neste romance.Porquê?Quan<strong>do</strong> escrevo um livro cuja acçãose passa no passa<strong>do</strong> tento ser criteriosopara <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> surja com enormeexactidão. O meu próximo romanceinicia-se em Viena, em 1913, e a minhapesquisa tem si<strong>do</strong> tão exaustiva quantopossível. Mas quan<strong>do</strong> escrevo sobreo aqui e agora, da<strong>do</strong>s específicos – o<strong>que</strong> está a dar na televisão, <strong>que</strong>m ganhouo Campeonato <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, o <strong>que</strong>diz o primeiro ministro – tornam-seimediatamente data<strong>do</strong>s. Foi por isso<strong>que</strong>, neste livro, evitei mencionar nomese lugares. Quero <strong>que</strong> o livro sejaintemporal e possa ser li<strong>do</strong> da mesmaforma em 2020, por exemplo. Não<strong>que</strong>ro <strong>que</strong> certos <strong>de</strong>talhes contribuampara encerrar os meus livros numacápsula <strong>do</strong> tempo.Dedica to<strong>do</strong>s os seus livros à suamulher, Susan.Sempre <strong>que</strong> acabo <strong>de</strong> escrever umlivro penso <strong>que</strong> não há mais ninguéma <strong>que</strong>m o possa <strong>de</strong>dicar. Ela acompanha-meno processo e é a minha primeiraleitora e uma crítica severa. Naverda<strong>de</strong>, é a minha arma secreta.Não há dúvida <strong>de</strong> <strong>que</strong> parece seruma pessoa felizÉ verda<strong>de</strong>. Há <strong>que</strong>m diga <strong>que</strong> sou <strong>de</strong>masia<strong>do</strong>feliz para ser um excelenteromancista (risos). Mas <strong>que</strong> diabo, nãoé preciso ser-se infeliz, <strong>de</strong>sespera<strong>do</strong>,triste. Um gran<strong>de</strong> amigo meu, romancista,<strong>que</strong> também tem uma vida felize estável, diz sempre <strong>que</strong> <strong>que</strong>m andaà <strong>de</strong>riva numa jangada num mar infesta<strong>do</strong><strong>de</strong> tubarões não precisa <strong>de</strong>saltar para a água, só para experimentara sensação <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>vora<strong>do</strong>.Ver crítica <strong>de</strong> livros na pág. 36 e segs.Ípsilon • Sexta-feira 15 Outubro 2010 • 25

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