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comunicação e expressão<br />
por J. B. Oliveira*<br />
“Digitatore Traditore”<br />
Certamente você nunca viu nem ouviu essa frase! Por uma<br />
simples razão: ela não existe! É uma paráfrase da expressão<br />
italiana – esta sim, bem conhecida – “traduttore traditore”:<br />
“tradutor traidor”!<br />
Ocorre que, por várias razões, é inevitável ao tradutor não<br />
“trair”, alterara ideia, o conceito do autor cuja obra está passando<br />
para outra língua ou versão.<br />
Um antigo livro, publicado pela igualmente antiga Edições<br />
Melhoramentos, intitulado “A arte de traduzir”, do professor<br />
Brenno Silveira, traz um rico acervo de “traições” – em sua<br />
maior parte devidas à incompetênciaou ao açodamento – praticadas<br />
por tradutores “meia-boca”! Um deles traduziu a frase<br />
em espanhol “Maria se que dó enojada”, que significa Maria<br />
ficou magoada, como sendo “Maria ficou enojada”. Por sua vez,<br />
um jornal de São Paulo publicou, anos atrás, esta manchete:<br />
“violenta tempestade de azoto sobre a Argentina” – e causou espanto!<br />
Ora, azoto é outro nome para nitrogênio, quinto elemento<br />
mais abundante no universo, encontrado em estado gasoso, em<br />
sua fórmula molecular biatômica (N2)! A notícia original, em<br />
castelhano, dizia “violenta tempestad azotó la argentina”, isto<br />
é: violenta tempestade açoitou a Argentina! Ele comenta outra<br />
aberração: a frase inglesa “The expenses of the churches are<br />
defrayed by the community”: “Os gastos das igrejas são pagos<br />
pela comunidade”, foi traduzida assim: “Os gastos das igrejas<br />
são defraudados pela comunidade”! A traição do sentido se<br />
deu em razão de o tradutor ter confundido o verbo to defray:<br />
pagar custas ou gastos com to defraud: enganar, defraudar. Outro<br />
exemplo: ao traduzir a descrição de um personagem, certo<br />
texto diz: “O detetive era um homem de reconhecida surdez”!?<br />
Convenhamos que, para um detetive, a falta de acuidade auditiva<br />
deve ser um sério embaraço! Ora, o original inglês, ao se<br />
referir à peculiaridade do detetive, usa a palavra deftness, que<br />
significa agilidade, destreza, vivacidade! O possivelmente afoito<br />
e malformado tradutor tomou esse termo com deafness: surdez!<br />
Talvez o caso mais célebre, e que possivelmente esteja<br />
ligado à origem da frase, tenha sido o que ocorreu no século<br />
XVIII, mais precisamente no ano de 1766. E se deu com a mais<br />
conhecida das obras da área criminal do Direito:o famoso livro<br />
“Dei Delitti e delle Pene” (Dos delitos e das Penas), do chamado<br />
“pai do Direito Penal moderno” Cesare Beccaria (1738-1794).<br />
Seus conceitos são tão extraordinários que permanecem válidos<br />
até hoje! (E disse válidos. Não seguidos!). À guisa de exemplo,<br />
aí vão apenas três: “Quereis prevenir delitos? Fazei com que as<br />
leis sejam claras e simples. ”; “Quanto mais a pena for rápida e<br />
próxima do delito, tanto mais justa e útil será.” “ A certeza de<br />
um castigo, mesmo moderado, causará sempre impressão mais<br />
intensa do que o temor de outro, mais severo, aliado à esperança<br />
de impunidade. ”O livro teve sua tradução para o francês feita<br />
pelo Abade André Morellet (1727-1819). Para se ter uma ideia de<br />
quem era essa ilustre figura, basta dizer que ele foi o tradutor de<br />
uma obra de 1376, em latim, de Nicolau Eymeric (1320-1399),<br />
intitulada “Directorium Inquisitorum”: Manual do Inquisidor,<br />
responsável pela primeira e literal “caça às bruxas” da história!<br />
O abade Morellet tinha mente tão mordaz e persecutória, que<br />
Voltaire (François Marie Arouet – 1694-1778) chamava-o de<br />
“L’Abbé Mords-les” (O abade morde-os). O interessante e curioso<br />
da questão é que a tradução modificou profundamente a obra de<br />
Baccaria, mas, devido ao sucesso que teve a referida tradução, a<br />
ordem proposta por Morellet passou a servir de referência para a<br />
tradução em outras línguas, dentre elas o Português! Ainda mais<br />
curioso: a obra original fora publicada em 1764. Entretanto, após<br />
a edição de 1776 – cujo curador foi o próprio Cesare Beccaria –<br />
mesmo algumas edições em italiano adotaram como referência<br />
a tradução de Morellet!<br />
Vale a pena comparar algumas dessas alterações, por exemplo,<br />
nos títulos dos capítulos 1 e 7:<br />
ITALIANOFRANCÊS<br />
Capítulo 1:<br />
ORIGINE DELLE PENE DE L’ORIGINE DES PENES,<br />
ET DU FONDEMENT<br />
DU DROIT DE PUNIR<br />
ERRORI NELLA<br />
MISURA DE PENE<br />
Capítulo 7:<br />
DES TÉMOIS<br />
E a que título vêm todas essas considerações nesta coluna?<br />
Ah! É que ao escrever o título de meu artigo na edição<br />
anterior, o “digitattore” foi “traditore”! O título que dei era: “O<br />
jovem e a educação: um binômio crítico”. Saiu: “O jovem e a<br />
educação: um patrimônio crítico”! E aí não bateu com o fecho:<br />
“...pois sem este segundo fator, não há falar em binômio! ”<br />
Isso faz lembrar o caso de um zeloso pai, que pôs a correr<br />
o quase noivo de sua filha. Quando lhe indagaram o motivo,<br />
respondeu: “É que, em vez de tratar de consumar o matrimônio,<br />
ele só cuidava de consumir o patrimônio”!<br />
50<br />
* J. B. Oliveira é Consultor de Empresas, Professor Universitário, Advogado e Jornalista.<br />
É Autor do livro “Falar Bem é Bem Fácil”, e membro da Academia Cristã de Letras<br />
www.jboliveira.com.br – jboliveira@jbo.com.br