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revista Apólice #205

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comunicação e expressão<br />

por J. B. Oliveira*<br />

“Digitatore Traditore”<br />

Certamente você nunca viu nem ouviu essa frase! Por uma<br />

simples razão: ela não existe! É uma paráfrase da expressão<br />

italiana – esta sim, bem conhecida – “traduttore traditore”:<br />

“tradutor traidor”!<br />

Ocorre que, por várias razões, é inevitável ao tradutor não<br />

“trair”, alterara ideia, o conceito do autor cuja obra está passando<br />

para outra língua ou versão.<br />

Um antigo livro, publicado pela igualmente antiga Edições<br />

Melhoramentos, intitulado “A arte de traduzir”, do professor<br />

Brenno Silveira, traz um rico acervo de “traições” – em sua<br />

maior parte devidas à incompetênciaou ao açodamento – praticadas<br />

por tradutores “meia-boca”! Um deles traduziu a frase<br />

em espanhol “Maria se que dó enojada”, que significa Maria<br />

ficou magoada, como sendo “Maria ficou enojada”. Por sua vez,<br />

um jornal de São Paulo publicou, anos atrás, esta manchete:<br />

“violenta tempestade de azoto sobre a Argentina” – e causou espanto!<br />

Ora, azoto é outro nome para nitrogênio, quinto elemento<br />

mais abundante no universo, encontrado em estado gasoso, em<br />

sua fórmula molecular biatômica (N2)! A notícia original, em<br />

castelhano, dizia “violenta tempestad azotó la argentina”, isto<br />

é: violenta tempestade açoitou a Argentina! Ele comenta outra<br />

aberração: a frase inglesa “The expenses of the churches are<br />

defrayed by the community”: “Os gastos das igrejas são pagos<br />

pela comunidade”, foi traduzida assim: “Os gastos das igrejas<br />

são defraudados pela comunidade”! A traição do sentido se<br />

deu em razão de o tradutor ter confundido o verbo to defray:<br />

pagar custas ou gastos com to defraud: enganar, defraudar. Outro<br />

exemplo: ao traduzir a descrição de um personagem, certo<br />

texto diz: “O detetive era um homem de reconhecida surdez”!?<br />

Convenhamos que, para um detetive, a falta de acuidade auditiva<br />

deve ser um sério embaraço! Ora, o original inglês, ao se<br />

referir à peculiaridade do detetive, usa a palavra deftness, que<br />

significa agilidade, destreza, vivacidade! O possivelmente afoito<br />

e malformado tradutor tomou esse termo com deafness: surdez!<br />

Talvez o caso mais célebre, e que possivelmente esteja<br />

ligado à origem da frase, tenha sido o que ocorreu no século<br />

XVIII, mais precisamente no ano de 1766. E se deu com a mais<br />

conhecida das obras da área criminal do Direito:o famoso livro<br />

“Dei Delitti e delle Pene” (Dos delitos e das Penas), do chamado<br />

“pai do Direito Penal moderno” Cesare Beccaria (1738-1794).<br />

Seus conceitos são tão extraordinários que permanecem válidos<br />

até hoje! (E disse válidos. Não seguidos!). À guisa de exemplo,<br />

aí vão apenas três: “Quereis prevenir delitos? Fazei com que as<br />

leis sejam claras e simples. ”; “Quanto mais a pena for rápida e<br />

próxima do delito, tanto mais justa e útil será.” “ A certeza de<br />

um castigo, mesmo moderado, causará sempre impressão mais<br />

intensa do que o temor de outro, mais severo, aliado à esperança<br />

de impunidade. ”O livro teve sua tradução para o francês feita<br />

pelo Abade André Morellet (1727-1819). Para se ter uma ideia de<br />

quem era essa ilustre figura, basta dizer que ele foi o tradutor de<br />

uma obra de 1376, em latim, de Nicolau Eymeric (1320-1399),<br />

intitulada “Directorium Inquisitorum”: Manual do Inquisidor,<br />

responsável pela primeira e literal “caça às bruxas” da história!<br />

O abade Morellet tinha mente tão mordaz e persecutória, que<br />

Voltaire (François Marie Arouet – 1694-1778) chamava-o de<br />

“L’Abbé Mords-les” (O abade morde-os). O interessante e curioso<br />

da questão é que a tradução modificou profundamente a obra de<br />

Baccaria, mas, devido ao sucesso que teve a referida tradução, a<br />

ordem proposta por Morellet passou a servir de referência para a<br />

tradução em outras línguas, dentre elas o Português! Ainda mais<br />

curioso: a obra original fora publicada em 1764. Entretanto, após<br />

a edição de 1776 – cujo curador foi o próprio Cesare Beccaria –<br />

mesmo algumas edições em italiano adotaram como referência<br />

a tradução de Morellet!<br />

Vale a pena comparar algumas dessas alterações, por exemplo,<br />

nos títulos dos capítulos 1 e 7:<br />

ITALIANOFRANCÊS<br />

Capítulo 1:<br />

ORIGINE DELLE PENE DE L’ORIGINE DES PENES,<br />

ET DU FONDEMENT<br />

DU DROIT DE PUNIR<br />

ERRORI NELLA<br />

MISURA DE PENE<br />

Capítulo 7:<br />

DES TÉMOIS<br />

E a que título vêm todas essas considerações nesta coluna?<br />

Ah! É que ao escrever o título de meu artigo na edição<br />

anterior, o “digitattore” foi “traditore”! O título que dei era: “O<br />

jovem e a educação: um binômio crítico”. Saiu: “O jovem e a<br />

educação: um patrimônio crítico”! E aí não bateu com o fecho:<br />

“...pois sem este segundo fator, não há falar em binômio! ”<br />

Isso faz lembrar o caso de um zeloso pai, que pôs a correr<br />

o quase noivo de sua filha. Quando lhe indagaram o motivo,<br />

respondeu: “É que, em vez de tratar de consumar o matrimônio,<br />

ele só cuidava de consumir o patrimônio”!<br />

50<br />

* J. B. Oliveira é Consultor de Empresas, Professor Universitário, Advogado e Jornalista.<br />

É Autor do livro “Falar Bem é Bem Fácil”, e membro da Academia Cristã de Letras<br />

www.jboliveira.com.br – jboliveira@jbo.com.br

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