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JUNHO 2018 - Nº 242

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Opinião<br />

<strong>JUNHO</strong> <strong>2018</strong> 21<br />

“Mundo cruel e distorcido”<br />

PEDRO BARROSO<br />

EMPAREDADOS<br />

EM CASA, HOJE,<br />

TEREMOS TALVEZ<br />

TUDO; MAS TAMBÉM<br />

TALVEZ O MAIS<br />

CONVIVIDO DOS<br />

QUOTIDIANOS DE<br />

SOLIDÃO E DAS<br />

NOITES NUNCA<br />

ACONTECIDAS.<br />

Dantes havia gente atrás dos<br />

olhos das pessoas. Íamos ao<br />

banco, ao mercado, ao quiosque<br />

e alguém nos respondia<br />

com um bom dia e aviava-nos<br />

cenouras, jornais ou créditos.<br />

Enfim, negociava-se conversando<br />

com alguém. E a cara<br />

dos outros era-nos importante<br />

referência.<br />

Dantes, o professor, com todos<br />

os defeitos e preferências, lacunas<br />

e méritos, era uma pessoa;<br />

hoje há ensino net proporcionando<br />

cursos inteiros, sem<br />

nunca vermos tal outrora imprescindível<br />

personagem.<br />

Dantes o senhor do talho dizia:<br />

“olá D.ª Fernanda como vai?<br />

Tenho aqui uma peça q vou encetar<br />

só para si.” E a manteiga<br />

vinha em tigelões, batida com<br />

mais ou menos sal, outra com<br />

alho e coentros; o atum estava<br />

na barrica e a dúzia de ovos<br />

levava sempre 13; por cortesia<br />

da D.ª Micas do lugar de hortaliças<br />

e assuntos afins, por a<br />

minha mãe ser cliente habitual.<br />

Numa sociedade onde os robots<br />

substituíram as pessoas,<br />

é notícia de hoje os carros sem<br />

condutor em aprovação, com<br />

rotas e vias já previstas de Mérida<br />

a Évora, e do Porto a Vigo.<br />

Dantes a música era feita por<br />

músicos; agora qualquer DJ<br />

encartado é um produtor de sucesso,<br />

fazendo uma base martelada<br />

e apondo uma espécie<br />

de melodia oculta, distorcida,<br />

de preferência alta e contundente<br />

para abanar o capacete;<br />

e um programa de computador<br />

- para quem saiba tais técnicas,<br />

claro - pode facilmente suprir<br />

orquestras inteiras.<br />

Em tudo - transacções bancárias,<br />

certidões, reservas hoteleiras,<br />

conversas de simpatia<br />

tornaram-se em bookings assépticos,<br />

onde não dá para pedirmos<br />

aquela cama verde que<br />

tanto apreciáramos na última<br />

vez, e o quarto com vista para<br />

a torre Eiffel, os Clérigos, ou<br />

talvez Cacilhas.<br />

Nos ticket lines compram-se<br />

bilhetes, sem falar com a senhora<br />

da bilheteira que nos disponibilizava<br />

as cadeiras F23 e<br />

F25 que tinham mais espaço<br />

para as pernas, mas ninguém<br />

sabia. E piscávamos-lhe o<br />

olho, agradecidos.<br />

Onde pára tudo isso? A cumplicidade?<br />

Todo esse exército<br />

de gente viva que comunicava<br />

connosco?<br />

Como testar o queijo, o presunto,<br />

ou a melancia, para saber<br />

se os queremos mesmo levar<br />

para casa? Como resolver, se<br />

do outro lado do balcão apenas<br />

existem pacotes de todos<br />

os formatos? Carnes frias empacotadas<br />

com um ar tristíssimo<br />

de estar ali e abertura fácil<br />

sempre dificílima?<br />

Como? - se a própria caixa<br />

virou balança automática, o<br />

boletineiro já não nos traz telegramas<br />

e os carregadores de<br />

piano viraram empresa?<br />

Emparedados em casa, hoje,<br />

teremos talvez tudo; mas também<br />

talvez o mais convivido<br />

dos quotidianos de solidão e<br />

das noites nunca acontecidas.<br />

Resta a arte, a opinião, a ruralidade,<br />

a cozinha tradicional, o<br />

artesanato, a florista talvez, o<br />

encontro acidental e meia dúzia<br />

de coisas que vossências<br />

edificantemente reunirão, para<br />

ainda vivermos o contraditório<br />

desespero de nos sentirmos<br />

culpados de menos modernidade.<br />

O toque e o sorriso. Por<br />

favor.<br />

Consideram-nos então uma<br />

espécie de velhos do Restelo<br />

da tecnologia e do tão complexo<br />

e inextricável simplex que<br />

inundou feroz e discriminatoriamente<br />

as nossas vidas. Seremos.<br />

Mas invadiram-nos, exploram-<br />

-nos, violam-nos.<br />

Até na intimidade, onde sites<br />

especializados, pagando bem,<br />

nos farão busca automática de<br />

parceira de olhos azuis, morena,<br />

1,63, professora, 87 68 87,<br />

agnóstica, sem filhos e com um<br />

certo gosto por... filatelismo.<br />

Onde iremos parar sem caras<br />

para olharmos? nem razões<br />

para dirimirmos? nem<br />

interlocutores para negociar o<br />

desconto? nem almas misericordiosas<br />

que nos instalem a<br />

ultima app ou o último upgrade<br />

que nos permitirá viver sem<br />

motorista? Sem carvoeiro?<br />

Sem marçano a levar o caixote<br />

de compras a casa? Sem a<br />

senhora da fava rica e dos caracóis<br />

a copo?<br />

Que mundo cruel e distorcido.<br />

Que servidão.<br />

É-me dramático comprar, sem<br />

ninguém do outro lado do balcão.<br />

Com um sorriso e voz. Caras<br />

e funções há, que desapareceram<br />

na voracidade de um<br />

mundo robótico, à velocidade<br />

de 2 gerações.<br />

Os frangos nascem hoje já depenados<br />

e amanhados, nas<br />

prateleiras e arcas congeladoras<br />

dos supermercados. Nunca<br />

viram chão. Sabemos. É<br />

mais prático e higiénico que as<br />

velhas lojas de criação.<br />

Mas as galinhas de antigamente<br />

não me sabiam como<br />

estas, a cartão prensado.<br />

Carros sem motorista?! Eu<br />

gosto tanto de guiar, ao fim da<br />

tarde, pelos campos floridos<br />

sem fim, em estradas lentas,<br />

contigo ao lado.<br />

Se me forçarem a entrar amanhã<br />

num carro sem volante, eu<br />

vou ficar assustadíssimo, confuso<br />

e deprimido. Avario.<br />

Não obrigado, senhores. Vou<br />

de comboio; se ainda houver<br />

tal coisa.

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