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STORYTELLER<br />
Ejla/iStock<br />
Tempos<br />
<strong>de</strong> vergonha<br />
Descobri um brasileiro que não<br />
conhecia, pessoas que jamais<br />
imaginei terem um lado tão<br />
rancoroso, odioso e violento<br />
LuLa Vieira<br />
Acho que fui o único brasileiro que não<br />
<strong>de</strong>u pitaco sobre Bolsonaros, Haddads,<br />
Ciros e Cabos Daciolos.<br />
Confesso que estive pasmo com tudo,<br />
não acreditando, como não acredito até<br />
agora, que pudéssemos chegar on<strong>de</strong> chegamos.<br />
Descobri um brasileiro que não conhecia,<br />
pessoas que jamais imaginei terem um<br />
lado tão rancoroso, odioso e violento, pessoas<br />
portadoras <strong>de</strong> ódios inacreditáveis,<br />
que não é a situação do país que explica,<br />
mas apenas é prova <strong>de</strong>finitiva que a capa <strong>de</strong><br />
civilização é frágil como uma casca <strong>de</strong> ovo.<br />
Eu me enganei quando, tempos atrás,<br />
eventualmente, lia notícias <strong>de</strong> linchamentos<br />
por engano, com a alegre participação<br />
<strong>de</strong> transeuntes que ajudavam a matar por<br />
nada, só pelo simples prazer <strong>de</strong> fazer mal,<br />
<strong>de</strong> ver sangue.<br />
Eu lia – e li muito – sobre as manifestações<br />
<strong>de</strong> barbárie que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais<br />
são a característica do aglomerado<br />
urbano.<br />
Os espetáculos montados para o sacrifício<br />
<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados por heresia, <strong>de</strong>scrença,<br />
crimes <strong>de</strong> lesa-majesta<strong>de</strong>.<br />
Confesso que nunca consegui absorver<br />
como um maluco cria uma situação como<br />
a da Alemanha, cujo consi<strong>de</strong>rado povo superior,<br />
conscientemente, fechou os olhos<br />
para o Holocausto, muitos apoiando, em<br />
nome <strong>de</strong> uma supremacia racial e o direito<br />
inato <strong>de</strong> um povo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir os semelhantes<br />
<strong>de</strong> outra etnia.<br />
Eu achava que tínhamos evoluído.<br />
E percebo que estava errado. Tenho<br />
acompanhado com horror nas re<strong>de</strong>s sociais<br />
manifestações sem nenhuma racionalida<strong>de</strong>,<br />
apenas o efeito daninho da turba açulada<br />
como matilha.<br />
Alguém po<strong>de</strong> dizer que não houve mortes<br />
e batalhas campais.<br />
Houve sim, a morte do bom senso, da<br />
empatia e da solidarieda<strong>de</strong>. Houve a disseminação<br />
da mentira como estratégia <strong>de</strong><br />
campanha eleitoral.<br />
Houve a fala <strong>de</strong>struidora convocando<br />
para a morte, sob os urros frenéticos <strong>de</strong><br />
multidões enlouquecidas.<br />
Pais com crianças no colo gritavam sua<br />
imensa <strong>de</strong>sesperança na humanida<strong>de</strong>, convocando<br />
seus iguais <strong>de</strong> ocasião para <strong>de</strong>struir,<br />
arrasar, extirpar inimigos, também<br />
pais, também filhos.<br />
Demos um passo atrás na aceitação dos<br />
<strong>de</strong>siguais, no amor pelos nossos artistas,<br />
na busca por enten<strong>de</strong>r os outros.<br />
Demos sim um passo atrás, que espero<br />
tenha sido curto e que os puros <strong>de</strong> coração<br />
não se <strong>de</strong>ixaram ainda contaminar. Não,<br />
não estou sendo catastrófico.<br />
Acobertados pela aparente distância das<br />
re<strong>de</strong>s sociais, li troca <strong>de</strong> insultos vergonhosos,<br />
pessoas revelando com <strong>de</strong>spudor sua<br />
a<strong>de</strong>são ao vale-tudo para ganhar.<br />
Gente que preten<strong>de</strong> ser exemplo para<br />
seus filhos divulgando evi<strong>de</strong>ntes mentiras.<br />
Vi imagens <strong>de</strong> religiosos (<strong>de</strong> todas as correntes)<br />
vociferando impropérios como se<br />
possuídos por Satanás, talvez o verda<strong>de</strong>iro<br />
gran<strong>de</strong> vencedor <strong>de</strong>sta disputa.<br />
E digo mais: tenho medo, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />
que se alguém <strong>de</strong>r o primeiro tiro, o primeiro<br />
tapa, já que não há mais insultos que não<br />
tenham sido usados, passemos da palavra<br />
à ação.<br />
Mesmo que isso não aconteça, já <strong>de</strong>monstramos<br />
o que somos.<br />
E me envergonho profundamente pelo<br />
que vi.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira@grupomesa.com.br<br />
20 <strong>15</strong> <strong>de</strong> <strong>outubro</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark