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edição de 22 de julho de 2019

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STORYTELLER<br />

Trama internacional<br />

Talvez seja o acontecimento que<br />

mais se aproxima <strong>de</strong> uma trama<br />

digna <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> espionagem<br />

Xesai/iStock<br />

LuLa Vieira<br />

Participei <strong>de</strong> perto <strong>de</strong> uma trama internacional.<br />

Alguém já teve a experiência<br />

<strong>de</strong> viver <strong>de</strong> perto uma situação envolvendo<br />

a segurança do planeta? Pois é, pobres<br />

mortais <strong>de</strong> vida comum, eu já. É bem verda<strong>de</strong><br />

que por motivos óbvios não vou po<strong>de</strong>r<br />

contar <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong>sta minha aventura nos<br />

meandros da diplomacia. Esses motivos<br />

óbvios são realmente óbvios: eu não sei<br />

<strong>de</strong> nada. Mas, no meu mirrado currículo<br />

<strong>de</strong> aventureiro, este talvez seja o acontecimento<br />

que mais se aproxima <strong>de</strong> uma trama<br />

digna <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> espionagem. Vou<br />

contar o que sei, vi e ouvi, já que décadas<br />

nos separam dos fatos e provavelmente a<br />

maioria dos participantes já está morta ou<br />

aposentada.<br />

O cenário é Londres, início da década<br />

<strong>de</strong> 1970. Tudo começa no aeroporto <strong>de</strong> Heathrow.<br />

Eu já estava na cida<strong>de</strong>, para uma<br />

reunião da De Beers, e fui receber meu<br />

colega Pedro Paulo <strong>de</strong> La Peña, diretor da<br />

conta na Thompson Espanha, que chegaria<br />

<strong>de</strong> Madri. E ele, apesar <strong>de</strong> todas as<br />

confirmações e <strong>de</strong> ter seu nome na lista <strong>de</strong><br />

passageiros, ao chegar no aeroporto, <strong>de</strong>sapareceu.<br />

Simplesmente. Sumiu. Fui ao balcão<br />

da Iberia, à polícia, à alfân<strong>de</strong>ga. Tudo<br />

indicava que ele tinha <strong>de</strong>sembarcado, mas<br />

havia misteriosamente <strong>de</strong>saparecido. Com<br />

meu inglês irretocável (não há o que se possa<br />

fazer com ele) eu tentava <strong>de</strong>sesperadamente<br />

<strong>de</strong>scobrir como meu colega e amigo<br />

po<strong>de</strong>ria ter sumido. Nada no pronto-socorro,<br />

nenhum rastro no DutyFree. Pedro Paulo<br />

tinha sumido em algum momento. Num<br />

tempo sem celulares (sim, o mundo já existia<br />

antes dos celulares, ainda que os mais<br />

jovens não possam imaginar como seria)<br />

comecei a ficar <strong>de</strong>sesperado.<br />

Ligar para Madri e conversar com a mulher<br />

<strong>de</strong>le não me pareceu uma boa opção.<br />

Perguntar o quê? Cadê o Pedro Paulo? Sumiu<br />

do avião? Vai ver que ele conheceu uma<br />

mulher <strong>de</strong>slumbrante no voo e à esta altura<br />

já está entregue ao mais caloroso romance.<br />

Ou, quem sabe, diante <strong>de</strong> um comissário parecido<br />

com Dominguim, <strong>de</strong>scobriu o amor<br />

que não ousa dizer seu nome. Estaria perdido<br />

no aeroporto, vítima <strong>de</strong> um apagão <strong>de</strong><br />

consciência? Mistério. Tive <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> horas <strong>de</strong> busca inútil. Só fui encontrar<br />

Pedro Paulo horas <strong>de</strong>pois, na se<strong>de</strong> da De<br />

Beers. Puto da vida. Insuportável. Completamente<br />

fora <strong>de</strong> si, clamando por touros para<br />

matá-los com as próprias mãos. Depois <strong>de</strong><br />

muito tempo, conseguiu explicar. Ao sair da<br />

alfân<strong>de</strong>ga, foi surpreendido com uma placa<br />

on<strong>de</strong> estava seu nome. Imaginando que eu<br />

tivera algum imprevisto, concluiu ser seu<br />

transporte e – confiante – se apresentou. Foi<br />

conduzido para uma limousine enorme, por<br />

três homens armados que – cheios <strong>de</strong> rapapés<br />

– o instalaram no banco <strong>de</strong> trás. E se<br />

mandaram, falando um inglês pior do que<br />

o meu (como se fosse possível) e explicando<br />

algumas coisas num tom absolutamente<br />

subserviente. Mas ininteligível.<br />

Até que já meio distante do centro, pararam<br />

num posto <strong>de</strong> gasolina on<strong>de</strong> Pedro<br />

Paulo conseguiu se fazer enten<strong>de</strong>r. Cadê o<br />

Lula? Para on<strong>de</strong> vocês estão indo? Quem<br />

são vocês? Que merda eu estou fazendo<br />

nos arredores <strong>de</strong> Londres? Socorro! Os caras,<br />

então <strong>de</strong>scobriram que estavam com o<br />

Pedro Paulo errado. E, numa <strong>de</strong>selegância<br />

atroz, jogaram as malas <strong>de</strong>le no chão e se<br />

mandaram. Pedro Paulo teve <strong>de</strong> chamar<br />

um táxi e ir para o escritório da De Beers<br />

por conta própria. À esta altura a Thompson<br />

inteira, a embaixada da Espanha, a<br />

polícia <strong>de</strong> Madri estavam investigando o<br />

misterioso sumiço <strong>de</strong> um espanhol. Eu<br />

diria que Pedro Paulo chegou como se espera<br />

<strong>de</strong> um ilustre portador <strong>de</strong> seu sangue.<br />

Muito puto da vida. Querendo processar<br />

a Inglaterra inteira, a Scotland Yard, quebrar<br />

os cofres fortes da De Beers e, <strong>de</strong> sobra,<br />

encher <strong>de</strong> porrada o filho da puta que<br />

não foi buscá-lo no aeroporto. Ou seja: eu.<br />

Acalmar quem havia <strong>de</strong>? Fluente em várias<br />

línguas, ele ofen<strong>de</strong>u a mãe <strong>de</strong> todo mundo<br />

<strong>de</strong> várias etnias. Foi um custo convencê-<br />

-lo que eu estava no aeroporto, conforme<br />

o combinado e não tinha nada com a troca<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Isso é tudo. Mas toda vez<br />

que <strong>de</strong>sembarco num país estrangeiro fico<br />

imaginando quem eram os caras que estavam<br />

buscando o Pedro Paulo. Que reunião<br />

seria aquela que haveria com ele? E o que<br />

aconteceu com o outro Pedro Paulo? E com<br />

os caras da limousine? Mas toda vez que alguém<br />

conta perto <strong>de</strong> mim alguma história<br />

que envolva espionagem ou mistério, dou<br />

um risinho <strong>de</strong> soberba. Eu já estive envolvido<br />

num caso internacional. E saí vivo para<br />

contar. Quer dizer. Vivo por enquanto.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

jornal propmark - <strong>22</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> 33

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