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STORYTELLER<br />
Trama internacional<br />
Talvez seja o acontecimento que<br />
mais se aproxima <strong>de</strong> uma trama<br />
digna <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> espionagem<br />
Xesai/iStock<br />
LuLa Vieira<br />
Participei <strong>de</strong> perto <strong>de</strong> uma trama internacional.<br />
Alguém já teve a experiência<br />
<strong>de</strong> viver <strong>de</strong> perto uma situação envolvendo<br />
a segurança do planeta? Pois é, pobres<br />
mortais <strong>de</strong> vida comum, eu já. É bem verda<strong>de</strong><br />
que por motivos óbvios não vou po<strong>de</strong>r<br />
contar <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong>sta minha aventura nos<br />
meandros da diplomacia. Esses motivos<br />
óbvios são realmente óbvios: eu não sei<br />
<strong>de</strong> nada. Mas, no meu mirrado currículo<br />
<strong>de</strong> aventureiro, este talvez seja o acontecimento<br />
que mais se aproxima <strong>de</strong> uma trama<br />
digna <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> espionagem. Vou<br />
contar o que sei, vi e ouvi, já que décadas<br />
nos separam dos fatos e provavelmente a<br />
maioria dos participantes já está morta ou<br />
aposentada.<br />
O cenário é Londres, início da década<br />
<strong>de</strong> 1970. Tudo começa no aeroporto <strong>de</strong> Heathrow.<br />
Eu já estava na cida<strong>de</strong>, para uma<br />
reunião da De Beers, e fui receber meu<br />
colega Pedro Paulo <strong>de</strong> La Peña, diretor da<br />
conta na Thompson Espanha, que chegaria<br />
<strong>de</strong> Madri. E ele, apesar <strong>de</strong> todas as<br />
confirmações e <strong>de</strong> ter seu nome na lista <strong>de</strong><br />
passageiros, ao chegar no aeroporto, <strong>de</strong>sapareceu.<br />
Simplesmente. Sumiu. Fui ao balcão<br />
da Iberia, à polícia, à alfân<strong>de</strong>ga. Tudo<br />
indicava que ele tinha <strong>de</strong>sembarcado, mas<br />
havia misteriosamente <strong>de</strong>saparecido. Com<br />
meu inglês irretocável (não há o que se possa<br />
fazer com ele) eu tentava <strong>de</strong>sesperadamente<br />
<strong>de</strong>scobrir como meu colega e amigo<br />
po<strong>de</strong>ria ter sumido. Nada no pronto-socorro,<br />
nenhum rastro no DutyFree. Pedro Paulo<br />
tinha sumido em algum momento. Num<br />
tempo sem celulares (sim, o mundo já existia<br />
antes dos celulares, ainda que os mais<br />
jovens não possam imaginar como seria)<br />
comecei a ficar <strong>de</strong>sesperado.<br />
Ligar para Madri e conversar com a mulher<br />
<strong>de</strong>le não me pareceu uma boa opção.<br />
Perguntar o quê? Cadê o Pedro Paulo? Sumiu<br />
do avião? Vai ver que ele conheceu uma<br />
mulher <strong>de</strong>slumbrante no voo e à esta altura<br />
já está entregue ao mais caloroso romance.<br />
Ou, quem sabe, diante <strong>de</strong> um comissário parecido<br />
com Dominguim, <strong>de</strong>scobriu o amor<br />
que não ousa dizer seu nome. Estaria perdido<br />
no aeroporto, vítima <strong>de</strong> um apagão <strong>de</strong><br />
consciência? Mistério. Tive <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> horas <strong>de</strong> busca inútil. Só fui encontrar<br />
Pedro Paulo horas <strong>de</strong>pois, na se<strong>de</strong> da De<br />
Beers. Puto da vida. Insuportável. Completamente<br />
fora <strong>de</strong> si, clamando por touros para<br />
matá-los com as próprias mãos. Depois <strong>de</strong><br />
muito tempo, conseguiu explicar. Ao sair da<br />
alfân<strong>de</strong>ga, foi surpreendido com uma placa<br />
on<strong>de</strong> estava seu nome. Imaginando que eu<br />
tivera algum imprevisto, concluiu ser seu<br />
transporte e – confiante – se apresentou. Foi<br />
conduzido para uma limousine enorme, por<br />
três homens armados que – cheios <strong>de</strong> rapapés<br />
– o instalaram no banco <strong>de</strong> trás. E se<br />
mandaram, falando um inglês pior do que<br />
o meu (como se fosse possível) e explicando<br />
algumas coisas num tom absolutamente<br />
subserviente. Mas ininteligível.<br />
Até que já meio distante do centro, pararam<br />
num posto <strong>de</strong> gasolina on<strong>de</strong> Pedro<br />
Paulo conseguiu se fazer enten<strong>de</strong>r. Cadê o<br />
Lula? Para on<strong>de</strong> vocês estão indo? Quem<br />
são vocês? Que merda eu estou fazendo<br />
nos arredores <strong>de</strong> Londres? Socorro! Os caras,<br />
então <strong>de</strong>scobriram que estavam com o<br />
Pedro Paulo errado. E, numa <strong>de</strong>selegância<br />
atroz, jogaram as malas <strong>de</strong>le no chão e se<br />
mandaram. Pedro Paulo teve <strong>de</strong> chamar<br />
um táxi e ir para o escritório da De Beers<br />
por conta própria. À esta altura a Thompson<br />
inteira, a embaixada da Espanha, a<br />
polícia <strong>de</strong> Madri estavam investigando o<br />
misterioso sumiço <strong>de</strong> um espanhol. Eu<br />
diria que Pedro Paulo chegou como se espera<br />
<strong>de</strong> um ilustre portador <strong>de</strong> seu sangue.<br />
Muito puto da vida. Querendo processar<br />
a Inglaterra inteira, a Scotland Yard, quebrar<br />
os cofres fortes da De Beers e, <strong>de</strong> sobra,<br />
encher <strong>de</strong> porrada o filho da puta que<br />
não foi buscá-lo no aeroporto. Ou seja: eu.<br />
Acalmar quem havia <strong>de</strong>? Fluente em várias<br />
línguas, ele ofen<strong>de</strong>u a mãe <strong>de</strong> todo mundo<br />
<strong>de</strong> várias etnias. Foi um custo convencê-<br />
-lo que eu estava no aeroporto, conforme<br />
o combinado e não tinha nada com a troca<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Isso é tudo. Mas toda vez<br />
que <strong>de</strong>sembarco num país estrangeiro fico<br />
imaginando quem eram os caras que estavam<br />
buscando o Pedro Paulo. Que reunião<br />
seria aquela que haveria com ele? E o que<br />
aconteceu com o outro Pedro Paulo? E com<br />
os caras da limousine? Mas toda vez que alguém<br />
conta perto <strong>de</strong> mim alguma história<br />
que envolva espionagem ou mistério, dou<br />
um risinho <strong>de</strong> soberba. Eu já estive envolvido<br />
num caso internacional. E saí vivo para<br />
contar. Quer dizer. Vivo por enquanto.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
jornal propmark - <strong>22</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> 33